sábado, 30 de janeiro de 2010

Hiato?

Se o Luar perde de vista a Lua, ou o Canto o Peito de que emana, que será isto senão o hiato?

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A Flauta Mágica na savana.

A flauta mágica na savana.




O oficial cubano das forças expedicionárias em Angola, perdido na imensidão dos planaltos da Huila, ordenou ao condutor que parasse o jeep. À retaguarda, toda a coluna estacou.

Desenfiou do pacote um cigarro e acendeu-o. Sentou-se no chão, de pernas traçadas, e ficou estático e à escuta. Só então os circunstantes alcançaram a razão do súbito repouso.

O ar era cruzado por uma voz gutural de ancião, que parecia brotar da terra seca e gretada. O Sol iniciava o derradeiro declínio sobre a linha do horizonte longínquo.

Ali, ninguém reconheceria num cântico, em que se cruzavam longínquas invocações sincopadas, a estrutura clara e luminosa de um trecho da ópera de Mozart, escrito para soprano.

O oficial chamou o seu guia e estugou o passo em direcção a um velho de cujo peito esquálido dimanava a profunda voz. Estava também sentado no chão, encostado a um penedo emergente.

Parou à sua frente e ficou a ouvir. O velho não interrompeu o seu cântico. Dos seus olhos fixos dimanava uma paz profunda, como se no mundo nenhuma tragédia mais pudesse eclodir. Já houveram eclodido todas. O seu mundo estava em paz, a guerra já passara ao seu lado, só restavam cinzas. Ele era uma réstia de cinza.

O oficial pediu ao guia que lhe perguntasse onde aprendera aquele cântico. O velho encolheu os ombros. O que importava?

O oficial insistiu. O velho fixou-o nos olhos, parecia que lhe trespassava o ser. O oficial, temerário, sentiu correr-lhe pela espinha um arrepio.

O velho fez um gesto vago, sem deixar de o fitar, como se dissera: há tanto tempo…

O oficial recalcitrou na interpelação. Sentou-se em frente do ancião como se quisesse comunicar que não sairia dali enquanto não obtivesse resposta.

O velho espraiou então o olhar em itinerário envolvente. Cerca de duas centenas de homens armados e uma dezena de viaturas militares. A sua esfíngica expressão era de interrogação serena. Então isto ainda não acabou?

Melhor seria responder, para que aquela horda prosseguisse o seu caminho e a paz pudesse regressar.

Dirigiu-se ao guia como que invocando uma memória longínqua.

Fora uma rapariga branca que aparecera, não se sabia porquê nem vinda de onde, sentada no tecto de um carro desses, a cantar. Estava só. Toda a gente da aldeia viera ouvi-la. A sua voz parecia vir de tão longe que, durante algumas luas, se altercou na aldeia se era a rapariga ou as águas do rio quem cantava. Concluiu-se, por conveniência, que eram as águas do rio.

Pouco depois chegaram dois homens brancos e levaram a rapariga. A voz permaneceu até ao amanhecer. Só então o rio se silenciou.

O oficial interpelou de novo, por intermédio do seu guia: e porque cantas agora isso?

O velho olhou demoradamente no chão o labor de uma fileira de formigas. Levantou então a cabeça e fixou o olhar no do oficial, serenamente, sem pestanejar: para que tu te vás embora. Reiniciou o cântico.

O oficial levantou-se e mandou ainda perguntar: e se eu ficasse, à espera da rapariga, ou do cântico?

O velho já nem olhou mais o soldado. Suspendendo brevemente o cântico, sussurrou: não volta, já a mataste. Mataste também os meus pais, os meus filhos e os meus netos. Não resta já nada aqui para ti.


Aquele cântico já só pertencia àquele lugar, mesmo que o continuassem a entoar por todo o universo. Não era todavia o mesmo.


Considerações sobre a função e o motivo da narrativa.

Esta breve novela foi-me sugerida por um episódio lírico narrado por uma amiga. Ela é arqueóloga, com profundas incursões pela antropologia cultural, mas o eixo do nosso colóquio centra-se sobretudo na reflexão sobre o género de discurso que mais serve a filosofia e a ciência, para nos furtarmos ao atoleiro do discurso formal.
Aqui fica a breve troca de considerações posteriores à leitura. As considerações da minha amiga vão em itálico.

O oficial cubano é de que tempo?...... A visão de que aquele lugar remoto podia ser profanado por qualquer força militar....chocou-me ao ler.... antes de ir dormir. Mas agora...já não tanto....embora a conversa entre o velho e o oficial cubano no fim me pareça muito explícita.
Quando se deu o meu encontro com a tribo....e esse ponto é crucial....eu cantava...e durante a longa ária de Pamina, chegavam, em silêncio, 2, 8 30, 50 pessoas, aparentemente do nada, que ao nada voltaram, em silêncio, como num sonho....O encontro de mim com os outros...se não tivesse sido presenciado pelo motorista...que devia estar gelado dentro do jeep.... era do domínio do onírico!
Aquilo não se passou....foi um parêntesis ( em latim há uma palavra muito boa aquilo....de que não me recordo ). Ou uma bolha de tempo. A ideia de que alguém que me escutou pudesse mais tarde reproduzir um cântico....não me passaria pela cabeça, precisamente porque aquilo para mim não aconteceu....de facto.

As melhores palavras para designar o teu estado de espírito são gregas, utopia (o que existe fora do espaço) e ucronia (o que decorre fora do tempo). São os dois eixos que estruturam a imaginação. Diria Habermas que estruturam a ideologia no seu estádio constitutivo. Esta citação serve em exclusivo o intuito de dar à coisa uns ares de erudição.

Eu recorro aqui a um episódio real da história de Angola, o do confronto final na Jamba, junto do Rio Cuito, em que participou uma força de elite cubana de cerca de quinze mil homens contra o exército da Unita apoiado por tropas de elite sul-africanas. Mas de facto o episódio assim narrado é ucrónico e utópico, até porque tu não localizaste o teu episódio.
Nunca foi avaliado o impacto destes confrontos na população civil. Mas possuo relatos que testemunham que grande parte da população local nem conseguia identificar quem andava por ali à guerra. Quanto mais porquê.
Nesse sentido, para o velho, a guerra era o contra-ponto utópico e ucrónico da utopia e ucronia do canto.
Por isso, o oficial cubano materializava o agente tanto da morte da sua prole como da rapariga que cantara. Por conveniência metafórica quem cantava era o rio. Porque quando o canto se extinguise a rapariga já se ausentara.
Estás a ver... foi mesmo do Julio de Matos que saí para o mundo.
Mas, para compreenderes isto, terias que ter andado por lá, no meio da guerra. Por isso nunca poderias ser o sujeito da avaliação do efeito do teu canto. Ficas a avaliar o estado de espírito de um sujeito que se cruzou contigo há mais de trinta anos, saído do Júlio de Matos. E o efeito que o relato do teu canto nele causou há uma semana. Danada memória.
Complexos são os itinerários que inesperadamente se cruzam numa singela narrativa.
E, depois disto, ainda me hás de explicar o que é um ritual...
Ora, esta é a segunda história. Afinal não te roubei uma, roubei-te duas.
Síntese: quando conseguirmos fazer redundar toda a filosofia no género metafórico narrativo, teremos resolvido as questões que a filosofia, por si, não resolve. Foi a volta que Freud deu à filosofia e que ninguém conseguiu ainda retomar. Por isso te dizia que Foucault passou à história, para trás de Freud. E de outros. Relê o Borges.
E não me tomes por pretensioso. Estou apenas a iniciar uma contenda. Amorosa...
Tenho a certeza de que vais sair com uma mais iluminada e conclusiva.
Se não fora a tua inspiração, nunca chegara tão longe. És a minha musa, quer queiras, quer não.

Sem dúvida, utopia e ucronia são palavras que se aplicam ao que eu te represento que vivi. Mas deve haver uma palavra que designe “parêntesis”: algo que se intercala, que está no limiar, algo que está ali por pouco tempo...ou que pode desvanecer-se, algo de vibrante e transitório...algo entre. ENTRE. O efeito do que se passou ali naquelas pessoas nunca o conheceria....mesmo que as tivesse seguido e fosse viver com elas.
Há um livro que conta a história duma mulher brasileira- a partir do seu próprio relato muitos anos depois- que foi raptada, quando era uma criança de 8 anos, por uns índios, e que viveu com eles até aos 38 anos, altura em que fugiu. É a história do encontro e desencontro de dois mundos. A branca aprendeu a viver com os índios, casou com dois, teve filhos, falava a sua língua, e, no entanto, nunca se apartou da sua matriz afectiva e cultural de origem. E os índios chamavam-lhe (se não me engano) YAONAMA, “a outra mulher”, integrando-a nas suas vidas com precaução, e sempre, sempre, como “a mulher branca”. É um livro de antropologia, escrito por um italiano, publicado na col. “Terre Humaine”.
Um dia, nos Estados Unidos, num congresso mundial....daqueles a que já não tenho mais pachorra de assistir...estava a jantar com antropólogos de todo o mundo, e um, o mais velho, muito famoso, disse-me: “vivi com os índios do norte do Canadá durante 30 anos. Falava a sua língua, comia e dormia com eles, assistia aos seus rituais mais secretos, conversava com eles, e, no entanto, nunca os compreendi.”
Este fascínio nosso pelo outro, pelo radicalmente outro, este fascínio pela impossibilidade de compreender, que é tão ocidental....este desejo de olhar face-a-face...para, na face do outro, nunca ver mais que o nosso reflexo matizado de nostalgia magoada, este fascínio esteve ali comigo naquele fim de tarde. E a memória desse fascínio ainda hoje me entontece. Algo de forte e erotizado.
Para mim...quando tudo já não tem sentido, tudo está à beira do abismo, só se salva a poesia e a música. Não é a filosofia que me vai salvar. E, sim, claro, Freud abriu uma brecha..que talvez esteja ainda por compreender. Mas não quero contrapôr Foucault a Freud, porque ambos fazem parte dum mesmo sistema de reorganização do mundo...múltiplo e complexo.


A palavra que se adequaria então a esse estado de espírito não se pode dar conclusivamente como latina, verteu tanto no Latim como no Grego, é-lhes pois anterior. Hiato.


Ora, hiato significa um espaço e tempo que se perdeu, pois não se liga com os tópicos que ordenam a sequência de uma narrativa. Histórica por exemplo. Como não liga com o resto, transforma-se em tópico de uma narrativa autónoma e na representação metafórica do que não existiu na sequência do espaço e do tempo. Convergem para o seu sentido, então, utopia e ucronia. O tempo estancou e o espaço migrou para outra dimensão.
Esta matéria é crucial na dissecação do que é, de facto, aquilo que, nas suas ilusões, os antropólogos caracterizavam como observação comparticipada. A ilusão da operacionalidade dessa metodologia desvaneceu-se logo entre os mais astutos, recorendo a vários mecanismos de dissecação.
Ora, para mim, o tópico da dissecação é justamente hiato. Seja, a presença de um observador alógeno no quotidiano de uma comunidade, fechada ou não, constitui sempre um hiato. Mútuo. Seja, tanto na sequência narrativa do alógeno, quanto da comunidade. Passa para o domínio da representação onírica, dando ao termo uma acepção singular. Os hiatos de um e de outro, porque são hiatos, nunca se comunicam.
Foi por isso que a tua história me encantou logo. Sobre os antropólogos estava tudo dito. Mas sobre o hiato que um simples canto faz eclodir há muito mais para dizer. Seja, é na metáfora narrativa que a filosofia encontrará soluções para muita trapalhada.
A minha intervenção em vários episódios em Angola, foram também hiatos, como é óbvio. Foi por ter compreendido que o eram que me vim embora. Não é ocidental o fascínio pelo outro. É ocidental a mania de o integrar num sistema ou paradigma narrativamente sequencial de compreensão do mundo. Do meu ponto de vista, o modelo aplicado à relação com o outro por uma sociedade tradicional é justamente o do hiato. Empiricamente. Seja, para que o inesperado exterior não possa interferir com uma ordem funcional, o ocasional tem que se transferir para o domíinio não simbólico da narrativa estruturante, pertence ao domínio do caos. E sei que estou aqui a recorrer a conceitos transferidos que tenho que substituir, por isso vão em itálico.
E esperemos superar o hiato. Se o superarmos, ainda damos a volta a toda a filosofia, pelo flanco inesperado de um hiato passional.
Somos guerrilheiros filosóficos. E tu a minha musa. Nunca desenvolveria a matéria assim senão para ti. Porque já sabes que me evadi do Júlio de Matos.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Acerca de literacia

Breve estória




O professor está a testar a astúcia do aluno.
Mostra-lhe a reprodução de uma das mais conhecidas pinturas de Corot.


- O que vês nesta pintura?

- Uma pérola.


- Uma pérola? Só?...


- Por detrás da pérola vejo o busto de uma senhora. Mas também já sei o que me iria perguntar a seguir…


- Ai sim?... Diz lá.


- Se é a senhora quem usa a pérola, ou a pérola que usa a senhora?


- Adivinhaste!


- Não. Já o conheço de ginjeira, Senhor Professor…


Cerca de vinte anos após. O então aluno, agora sem abrigo, arruma automóveis numa praça lisboeta. É iliterato.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Para intervir numa «polémica» sobre Saramago.

Não compreendo bem porquê, muitos dos leitores críticos ou laudatórios de Saramago ressalvam, entre as mais notáveis excelências do estilo do mestre, a superação das normas canónicas da escrita, sobretudo no que respeita à estrutura sintática e à pontuação e repartição das enunciações, ou dos enunciados, como o queira entender Vossa Mercê. E entendem que aí reside emboscada a essência da mensagem literária, abrindo ao leitor um vasto domínio de intervenção sobre a escrita, no contexto da leitura.
E não sendo todavia uma novidade, este artefício de Saramago, talvez a ideia esteja bem congeminada.
Foi para repensar esta matéria que resolvi remexer na velha papelada, até encontrar uma sequência de intervenções que meu velho amigo Damião publicava, em fascículos, no jornal O Giraldo, em Évora. Há quase duas décadas.


CARTILHA MATERNAL,



Instrução Breve e Obrigatória,


método seguro para os doudos apenderem a ler e a escrever.


Dedicada ao Professor Doutor M. F. P.



Prólogo Breve, e dedicatória.


SENHOR PROFESSOR,



apresento pois a Vossa Senhoria, para que pondere e julgue, este Método Seguro Para Ensinar Os Doudos A Lerem E A Escreverem. Não quero com ele suprir as faltas daqueles que manda ensinar na magistral instituição a cujos desígnios preside; nem substituir o ilustre magistério de Vossa Senhoria.



Mas se a Vossa Senhoria foi dada a subtil astúcia de saber dar a cada um a sabedoria que lhe convém, eu acho que foi mais habilitado para ensinar os meninos, que têm o ouvido mais maleável para a música e o corpo mais viçoso para a ginástica. E como os doudos chegam aos bancos da escola em idade mais madura, necessário é provê-los de um método mais eficaz, para reger os tis, os travessões, os circunflexos e os hífenes. Sem perderem muito tempo com as metáforas e outros ramalhetes da retórica. Porque é de uma espécie de antropofagodoudagogia que se trata.



E porque para ensinar um perneta a correr é preciso primeiro, pelo menos, provê-lo de uma prótese; no mínimo de uma muleta.



Hoje, como sempre, a Vossa Senhoria dedicado,



DAMIÃO.





Capítulo primeiro; sobre a origem da língua, das palavras e das letras e algumas considerações sobre a doudice; a didáctica aplicada às letras e aos doudos.



A primeira coisa que se deve saber, para se poder escrever e ler como convém, é de onde vêm as letras, as palavras e a língua. E é coisa muito árdua.



Pensar-se-ia então que aos doudos se deve dispensar de exrcício tão violento, como é o de saber se tal vocábulo, tal signo, tal inflexão ou mesmo uma linguagem inteira vem do Latim ou do Grego, do Semítico ou do Camítico, do Rúnico, do Sínico, Nipónico, Índico, ou do Ibérico; ou se é Arábigo.



Mas devo advertir que a doudice é a habilitação conveniente à decifração destes mistérios das ciências filológicas, pois a própria origem da doudice é obscura e penumbrenta; e todo o doudo conhece, da sua paciência clínica, ciências muito afins, como a decifração dos sonhos, a criptografologia e outras artes de descodificação das charadas.



Todo o doudo deve saber então que a língua portuguesa é uma mistura do latim com o grego, o semítico numa proporção discreta de bíblico e de rabínico e o arábigo em partes iguais e equidistantes; que posteriormente ainda se enriqueceu com algumas entoações bantus e interjeições bosquímanes, da Indonésia e da Melanésia.



Mas porque nem todos aceitam esta simetria, é que há tantas variedades no falar; porque uns estão mais afeiçoados ao latim, outros ao semítico, outros ao sortilégio gutural e monossílabo do bosquímane e outros ainda ao tom de rabulice do arábigo. Um puxa para o grego, outro para o cananeu, congresso traz congresso e a língua portuguesa parece uma doudice, sem rei nem roque.



Por isso o que é conveniente, porque reduz o problema, é convir em que todas as línguas derivam do cananeu bíblico, tal qual o falava Moisés, que descende em linha directa do Babilónico antes da diferenciação dos falares.



E há quem diga que a doudice foi criada então, porque houve alguns em quem a fala não se diferenciou e ficaram a falar todas as línguas ao mesmo tempo, uma sílaba em latim e outra em fenício, uma consoante arábiga e uma vogal helénica. E há investigações recentes que comprovam, sem refutação, que existem algumas moedas hispano-romano-púnico-cananeias que denunciam estas astúcias. Um doudo é um monumento filológico.



É por isto que a arte de saber ler e escrever se deve ensinar aos doudos servindo-nos de dois métodos, convém saber: o primeiro é que aos doudos não se deve dizer que há só uma maneira de escrever, mas que há muitas, tantas quantas as diversidades criativas das suas astúcias filológicas. Por exemplo, a palavra portuguesa docência, vem de dois verbos latinos docere e ducere e sei lá de quantos outros gregos e fenícios; por conseguinte pode escrever-se ducência, docência e ainda, por equidade, doucência. Mas poder-se-ia dizer que vem, sem atalhos, do léxico grego doxa, que quer dizer a opinião do vulgo, quase aquilo a que chamamos hoje doudice. E então escrever-se-ia, com toda a legitimidade doxência. Ou estultícia.



E o segundo é que aos doudos não se deve sobrecarregar com muita gramática e o que interessa é que saibam distinguir um sinal de trânsito, ou o emblema de um partido, de uma metáfora do Vieira e do pé de um verso de um vilancete; uma lírica epístola amorosa, de uma petição ou requerimento e todas estas de uma receita de cozinha ou rol de mercearia. Um poema, do boletim de voto para as eleições autárquicas e a insígnia dos sociais democratas da dos comunistas. Porque aí é que a porca torce o rabo.



E que saibam falar por sinais e ler no movimento dos lábios, para poderem coloquear com os moucos, os gagos e os surdos.



E quanto à caligrafia, de que tratarei já no seguinte capítulo, tanto faz que escrevam da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de cima para baixo ou de baixo para cima, conforme à natureza ou ao jeito de cada um; porque contrariar uma inclinação estética é ainda pior do que emendar um feitio físico, um pé torto ou uma corcunda.



Continua no próximo número e segundo capítulo.







Capítulo segundo e trata do estilo no traçar das letras e algarismos, do tamanho das maiúsculas e das minúsculas; e porque razão a este assunto se não deve chamar caligráfico.



Chamava-se antigamente à arte de traçar as letras a caligrafia; e àqueles que as traçavam, calígrafos. E era uma arte muito estimada e ofícios disputados à paulada e bofetões.



Era a arte que primeiro se ensinava aos meninos. Logo que aprendiam a pronunciar mãmã, começavam a rabiscar os mm; quando diziam papá ficavam habilitados a usar três letras, a saber m, p e a. E davam-se umas noções de tis, circunflexos, graves e agudos, assuntos que podiam entrar logo em conjunção com as primeiras cantorias e pifaradas.



E era porque então se investia muito na estética, na harmonia e no aspecto exterior de todas as coisas. Quero dizer que era muito importante para os pais, os avós e os tios, poderem apresentar meninos bem adestrados, com um falar harmónico, uma postura elegante e desempoeirada e capazes de oferecer, a qualquer visita eventual, uma flor com um monumento caligráfico preso por um cordel ou fita de setim. Os meninos e os cachorrinhos de estimação disputavam a primazia na ribalta permanente que eram os serões, os casamentos, os baptizados, os bailes de apresentação das raparigas casadoiras e as consoadas.



De resto, a presença de um doudo, de um ceguinho a incomodar com umas rabecadas, ou a adivinhar o que os circunstantes escondiam nos bolsos, de um menino perneta, ou de um cão tinhoso, era sempre um ritual indeclinável de esconjura, que transmitia a todos a serena sensação do privilégio de uma vida ponderada.



E caligrafia quer dizer isso mesmo, a beleza, a harmonia e os artefícios no exercício do traçar das letras e até dos algarismos; cujos critérios são sempre subjectivos e dependem das inclinações estéticas de cada um. Por isso há uma caligrafia gótica, uma maneirista, uma barroca e até uma abstracta e uma rococó.



A caligrafia é um sinal exterior de distinção. E de exclusão, porque um canhoto, um maneta ou outro estropiado, não podem nunca rabiscar com o desempeno de um menino perfeito, bem nutrido e rubicundo. E há ainda os tremulentos, ou porque são dados a pânicos e ânsias, ou porque sofrem de alguma enfermidade, como seja aquela a que vulgarmente chamam a coreia.



E hoje se pugna por um ensino mais igualitário, que desvaneça as assimetrias mesmo formais entre os cidadãos e confira a cada um os meios de se integrarem até nos círculos mais prosélitos. E já não se vê com bons olhos que um cego, um coxo ou um doudo animem uma romaria, um grupo de beberrões numa taberna, ou um concurso de meninas no Casino do Estoril.



E acresce ainda que essa distinção que se conferia aos meninos mais favorecidos, quer da natureza, quer de seus pais, lhes custava muitas vezes grandes sacrifícios e agonias; eu conheço muitos cavalheiros, hoje muito bem colocados e distintos calígrafos, cujas mãos e alguns tiques são bem a marca de muitas barbaridades, que se cometiam para lhes endireitar a escrita, florear as maiúsculas, corrigir a postura e endireitar as costas, provê-los enfim de gestos largos elegantes e ritmados no escrever, que são sempre sintomas de liberalidade, benevolência e cortesia no pensar e agir.



Pensará o leitor que deriva do que disse que o vocábulo caligrafia se deveria substituir por equigrafia, mormente tendo em atenção aos doudos. Tratar-se-ia de os prover de um meio de se equalizarem a todos os outros cidadãos, inculcando em todos o gosto por uma traça sóbria e uniforme dos caracteres, reduzidos à sua mais pristina forma e feitio.



Bem pelo contrário. E os que assim pensam, ou por não lhes chegar a mais o pensamento, ou por desejarem que assim seja, investem de facto numa ilusão. Porque não há como a uniformidade para exibir as diferenças e pôr cruamente a nu as limitações e o génio de cada um.



O sistema que decorre geometricamente de tudo o que expus é a anarcografia, que quer dizer, mais coisa, menos coisa, a escrita sem mestre. E tenha-se em conta que da escrita sem mestre não decorre apenas que cada um escreve conforme ao seu feitio, mas também conforme à disposição do momento.



É o sistema mais expressivo de escrita e aproxima-se muito da caligrafia abstracta, ou gestual, pelo que não é propriamente uma novidade, mas uma reincidência ou redundância. Só que agora não é mais a estética que, tirana, dita o critério das traças, mas o coração e a gana.



Junte-se a isto que este sistema se intromete ainda com a ortografia, de que tratarei no seguinte capítulo e número e de um relance imagine-se já um gestualismo estrutural, tanto na escrita como nos falares, que é a doutrina sobre que incide todo este método.



Ficam com este sistema os doudos habilitados a escrever como melhor lhes convenha e sem que nada os distinga, com a cor e traça que melhor se ajuste às suas manias, tiques ou crenças, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de baixo para cima ou de cima para baixo, com maiúsculas, com minúsculas ou intercaladas e sortidas, pegadas ou soltas e ainda umas por cima das outras, circuncêntricas ou secantes. E de tal forma que num caracter se possam identificar muitos, por associação ou decomposição, simples ou múltipla, e por aproximação simbólica ou metafórica, de forma a suscitar um grande número de contextos e sentidos e exercitar múltiplas leituras intertextuais.



E como regras, mais propriamente sugestões, deixo apenas estas, que as maiúsculas tenham o dobro do tamanho das minúsculas; e que os p, os q, os d, os b e letras afins desçam ou subam abaixo ou acima de todas as outras dois terços da sua medida. Os algarismos terão sempre o dobro do padrão das letras e barrem-se os zeros para que se distingam, quando convier, dos os.

Continua no próximo capítulo e número.





Capítulo terceiro e trata do que se deve observar no escrever das palavras, arte a que os antigos chamavam ortografia.



Quase tudo o que dissemos no capítulo anterior com respeito à caligrafia, se deve entender para a ortografia que é a escrita conforme às regras, acordos e tratados. E devem-se entender três espécies de tratados, acordos ou pactos; uma é a dos tratados que os gramáticos, mormente os morfologistas e fonologistas fazem entre si e são baseados em conhecimentos e deduções rigorosas quanto à origem e desenvolvimento das palavras e ao seu encanto musical; outra é a dos acordos entre nações ou estados, que deixam sempre abandonados e coléricos os dialectos das minorias étnicas; outra a dos pactos entre os grupos e bandos com alguma unidade social e linguística, corporações, irmandades, partidos e até sindicatos. São estes últimos responsáveis pela maioria das gírias e guetos linguísticos, factores de decomposição e corrupção das línguas e réus de quase todas as espécies de erros.



Acrescem ainda aqueles a que chamamos pactos silenciosos, tácitos e sem expressão escrita, de natureza regional, de freguesia, de concelho, de região autónoma, mas muitas vezes só de um bairro ou quarteirão.



E há ainda uma espécie de incidência do foro do subconsciente colectivo no erro, ocorrências universais de árdua explicação sem recorrer a estudos profundos de sociolinguística, resídios de predisposições tenazes que mergulham nas ténebras das mentalidades colectivas, conjunturais ou de sistema. É o caso que, para exemplo, sem qualquer acordo, tratado ou pacto prévio, todos os alunos e professores das nossas escolas nomeiam o que dantes chamávamos, incorrectamente, frequências ou exames, textes. Ora texte é a palavra francesa que significa texto em português e o que se pretende é dizer teste, do verbo testar que significa avaliar ou verificar; mas o que é curioso e bizarro é que o que em português se diz teste, escreve-se em francês da mesmíssima maneira, test, sem tirar nem pôr.



O que quero concluir é que os erros continuam, na sua maior parte, a constituir normas ou regras colectivas ou individuais impostas pela moda, pela ignorância, ou por reincidência e pertinácia num espírito conservador ou, simplesmente, contraditório e quesilento. Ou por dislexia, que não é sequer uma doudice ou feitio, nem mania, mas um defeito da vista que não identifica os caracteres na sua forma, nem na sua ordem.



Já disse atrás que aos doudos se deve ensinar a escrever as palavras com incidência nos critérios filológicos e etimológicos, que são os mais liberais e menos sujeitos a regras, normas e imposições de significado e sentido. Porque a quantidade quase infindável de étimos de que um vocábulo pode derivar ou descender, gera igual amplitude de explorações de sentidos explícitos, implícitos e mesmo obscuros. É a razão porque actualmente abundam as concepções cabalísticas da língua e subliminares de toda a comunicação, cujos padrões se aproximam satisfatoriamente daquilo que, ainda há alguns anos, se designava como loucura.



Quase poderia dizer que é a conjuntura adequada aos doudos aprenderem a ler e a escrever com sucesso, sendo os intérpetres mais habilitados para executarem por feitio, mania ou outra disposição as reformas que os sábios propõem para as mentalidades estéticas, científicas ou literárias.



O meu conceito de anarcografia serve também para substituir o de ortografia, como referência a uma escrita gestual, neste caso para contemplar um gestualismo etimológico e filológico, que defino como a habilitação para explorar o máximo sentido e significado de cada palavra e grupo de letras em conjunção com uma conjuntura, ocorrência ou estado de espírito; e decidir concomitantemente da forma como a representar em caracteres.



O que fiz até agora, foi apenas laborar na distinção entre erro e anarquia, definindo o primeiro como uma forma errada de submissão a outras normas, regras ou condutas, no caso ditadas pela moda, ignorância colectiva ou individual, alinhamento sociopolítico ou profissional, cretinice reincidente, ou mesmo inveja ou espírito vingativo ainda que subconsciente. Ou por enfermidade oftálmica.



E a segunda como o assumir radical da liberdade de expressão e na comunicação e da não aceitação dos convénios que espartilham a língua e a escrita; nem das formas de distinção e exclusão que o proselitismo social, religioso ou cultural quer fazer incidir sobre todos aqueles que investem ou são obrigados a investir na originalidade e na individualidade; e que bloqueia os potenciais da filologia e da etimologia, como factores de enriquecimento estrutural e contínuo da expressividade das línguas, ou outras formas de comunicação.



O sistema que se usar então para os doudos aprenderem a escrever, seja o da anarquia gráfica ou anarcografia, que tem significado idêntico a etimologia ou filologia sem limites nem contenções de natureza disciplinar ou contratual. Seria o caso para falar de epietimologia.



Mas não se confira excessivo valor ao que já tratei; porque a escrita é apenas uma, entre as múltiplas formas de comunicar e coloquiar. E hoje em dia tornaram-se muito mais profícuas a linguagem verbal, visual e até por transmissão directa de pensamento, sem qualquer medium ou suporte formal ou material. Portanto, no próximo capítulo e número, tratarei da fonética e arte de ler e recitar, da mímica gestual e facial, da linguagem visual com introdução à semântica dos ícones, das escritas hieroglíficas e pictográficas em geral, hipnotismo e transmissão do pensamento, linguagem telefónica e comunicação telegráfica, sistemas lógicos e analógicos, colóquio por satélite e intergalático. Do código de Morse, de bandeirinhas e de um método seguro para aprender a ler nos movimentos dos lábios.



Nota: E não se acabou pelo mesmo motivo de que não se concluíu a História da Vida do Grão Pescador.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Formas de permanecer


Formas de permanecer


Muitas são as formas de o homem permanecer, após o seu material carcereiro se extinguir. Uma delas é no perfume que uma singela flor seca exala.
E na sua relação com quem sobrevive, ou sucede, pode ainda ser objecto de afecto tanto quanto de manipulação, violência, ou abandono.
É o abandono que parece esperar em breve o Menino Hermínio de Azevedo. O leitor, se não conhecer o Cemitério dos Prazeres, estará já a pensar: o homem ensandeceu, quem raio é o Menino Hermínio?
Mas durante gerações não havia quem entrasse pela álea axial do Cemitério cuja atenção não ficasse captiva de uma singela sepultura sempre bem cuidada e ornamentada com flores. Era a sepultura do Menino Hermínio, cuja vida foi precocemente cerceada há quase século e meio, porventura por qualquer enfermidade, na plenitude da infância. A imagem que aqui divulgo dispensa comentários e descrições.
Pois foi assim que o Menino Hermínio permaneceu, nos rituais quotidianos de milhares de visitantes que nem tiveram o privilégio de o conhecer em vida. O Menino Hermínio passou a ser aquela apelativa imagem de Jesus, infante, deitado e adormecido sobre uma cruz, segurando na mão esquerda, abandonada em queda, uma coroa de espinhos.
Pois quem entre hoje no Cemitério dos Prazeres já não verá flores. No pé esquerdo do Menino Hermínio, no local exacto onde, na imagem que divulgo, alguém depositou uma rosa vermelha, penduraram agora, com um arame, um letreiro em lata que reza: ABANDONADO.
Será assim que vai permanecer na nossa derradeira memória?

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Vinho (extracto)

Manuel de Castro Nunes


O vinho

Quatro episódios de embriaguez





Discurso prévio acerca do vinho e dos contextos e rituais do seu consumo


No senso comum, inspirado por profundas intrusões atávicas, as consequências do consumo do vinho até ao ultrapassar do limiar da lucidez manifesta-se em reacções antitéticas, bem expressas no juízo popular, este tem bom e aqueloutro mau vinho. Quer dizer que a embriaguez, ou o estado de torpor, exaltação, ou euforia que a antecede, se revela em alguns em manifestações de bonomia, em outros de furor.
Na cultura latina, imbuída de senso comum e espírito trivial, consagrou-se ainda a sentença in vino veritas. Quer dizer que o vinho obriga-nos a manifestar aqueles aspectos do nosso carácter que omitimos sob as roupagens com que nos apresentamos aos outros, ou mesmo, porventura ou por vezes, a nós próprios. Poderíamos até desta trivial sentença deduzir que ninguém se conheceu verdadeiramente sem ter perscrutado o limiar da embriaguez.
É deste sentido que verte o ditado popular, o vinho é que educa, o fado que instrui. E educa nesse exacto sentido, de que nos suscita ou proporciona o conhecimento profundo de nós próprios. Se por fado entendermos a poesia, passaremos a ter matéria que remonta aos mistérios órficos.
O vinho. O universo de alusões que evoca o vinho, numa multiplicidade quase inalcançável de temas, a mitologia, os rituais, a sociabilidade trivial, ou cerimonial, a guerra, a sobrevivência quotidiana.
Anestesia e euforia. Evasão, acutilância, dependência, trevas, distorção.
A dupla, ou múltipla visão, em dois sentidos, o da repetição, em planos diferentes de focagem, do manifestado e o da aptidão para capturar duas, ou mais manifestações de uma única coisa. O embriagado e o louco, com a sua carga de transcendência, o truão, o ridículo, o temerário e o prostrado.
A multiplicidade de significados e de sentidos.
O vinho, com o seu calor, a sua espessura, a sua cor, e o sangue dos imolados, como substituto ou como alusão. Ecce Sanguis Meus. O cálice.
O vinho e o álcool, no sentido alquímico, como o vapor que sobe e que eleva, o medium primordial da transmutação. A água pesada, sublunar e especular que Cristo transmutou em vinho, ou água viva, na boda dos esponsais.
E a embriaguez. Que tem o vinho que ver com a embriaguez?
A embriaguez é apenas um dos estados acidentais que podem advir da relação com o vinho. E, ainda assim, pode, no horizonte maniqueísta que se introduziu nos nossos juízos, ser boa ou má. Um estado de elevação ou um estado de queda.
No que toca ao vinho e à profundidade da sua substância cultural, histórica e sociológica, a embriaguez é um episódio. Ou dois, ou três, ou um minúsculo milhão que nem perturba o infinito.
Em que estado de euforia, em sentido literal ou alegórico, estaria Cristo quando proclamou: - Tomai, este é o meu sangue.?
Como antítese apresentou o pão e disse: - Tomai, esta é a minha carne.
E num instante, na opinião dos hermeneutas e dos teólogos, disse tudo. E pronto.


Como Antão, anacoreta solitário, foi tentado em sonhos e das fantásticas visões que o atormentaram.

Dizem, os hagiógrafos e cronistas, que Antão viveu muito tempo, mais de cem anos, a maior porção deles na solidão do seu abrigo na Tebaida, exposto aos rigores da vida selvagem, ao calor e ao frio, à sede e à fome. O que se diz de um homem que viveu há tanto tempo, solitário ainda por cima, sem ninguém a espiar as suas intimidades, pode suscitar algumas suspeitas. Mas, na verdade, para quem ouve ou lê estas histórias edificantes muito mais interessa o que se disse e diz, do que o homem.
Esse é inacessível, lá ficou sepultado algures, ainda que, de quando em quando, possam ressurgir, como para atestar a verossimilhança do que se vai dizendo, umas relíquias, um fragmento de um osso, um retalho do burel, ou até um pedaço de lama seca que guarda a impressão do rasto de uma sandália. E perante estes atestados materiais tudo o resto deles sorve a condição do verosímil.
Mas para lá do que se disse e escreveu, ainda houve quem representasse, pela imagem, a intimidade dos seus visionários e solitários arrebates. E aí, onde a imagem intervem nas formas de dizer, nem vale a pena contestar.
Ora é o caso de um pintor holandês, que por acaso, ou não, se chamou, ou lhe chamaram, Jerónimo e que viveu porventura menos de metade da vida de Antão, mas teve tempo ainda para lhe compilar os sonhos, visões e, na opinião de alguns até, algumas perversões da alma.
E, como o anacoreta vivia retirado em solidão nas profundezas do deserto, é bem mais provável que tenha sido o pintor quem bebia um copito a mais. Porque até então o que se sabia, transmitido pelo seu breve companheiro Atanásio, era que o pobre monge fora sucessivamente assediado por inauditas tentações dos demónios. Com o Sol a torrar-lhe os miolos, no êxtase das febres, bem poderia ter mergulhado nuns mirabolantes delírios, porventura tenebrentos, num estado semelhante ao da embriaguês, mas sem vinho.
Ora, se da natureza explícita das alucinações do eremita nada sabemos senão o que Atanásio relata, os efeitos da bebida na alucinada imaginação do mestre ficaram visualmente bem documentados e veneram-se ainda hoje como relíquias de outra espécie, em Lisboa, em Madrid e em muitos outros lugares. Ambíguas, porque tanto podem ser tidas como relíquias do santo, como do pintor.

Bem, até aqui, temos uma história trivial de um pintor com pendor para a bebida, que, no domínio do senso comum, se constituíu na hipótese mais coerente para sustentar o inesperado na obra de muitos génios, e que para suavizar as reacções dos circunstantes à sua cosmogenia ébria e inebriante a atribuiu a um santo, erradicando-a do horizonte do pecado ou transgressão, senão em espécie, em género pelo menos. Até porque o santo, assediado todavia por toda aquela cáfila de mafarricos, foi capaz de lhes opor a tenacidade das suas pias convicções. Não foi o caso do pintor, que, durante a sua breve vida, não foi capaz de se libertar das trevas com que a bebida lhe turvava um são alcance da vista sobre as coisas simples. Sempre que pegava no pincel, saiam-lhe para as tábuas os turbilhões de seres inimagináveis com que o abominável atormentara o pobre anacoreta.
Mas o que pouca gente sabe é que o pintor era cego. Em verdade, ébrios eram os pinceis.
Prova do que proponho é que, passados pouco mais de dez anos, andavam já nas mãos de outro mestre, um tal Pedro, sujeitando de novo os seus gestos e movimentos e a sua mente não menos perturbada às alucinações da embriaguez. Tal como as sandálias ou o burel do santo anacoreta, os pinceis alcançam limites de sobrevivência terrenal muito mais amplos do que os da vida humana. Tornam-se relíquias.
Atribui-se a Jesus a parábola que alerta os homens para o facto de que um cego, ou dois, ou uma fila deles guiados por outro cego se precipitarão no primeiro abismo que os surpreender na carreira.
Imaginem só uma academia inteira de pintores ébrios, trespassando mesmo várias gerações, guiados pelos mesmos pinceis. Que foram, por sua vez, buscar inspiração às alucinações de um anacoreta solitário atormentado pelo demo e que se evadira dos terrenais ermos havia mais de mil anos.

Bem, mas esta história não pretende na verdade versar o tema da embriaguez dos pinceis, nem dos pintores. Foi justamente o alumbramento dos santos o que nos interessou. Mais propriamente de Antão. O alumbramento é da mesma natureza da embriaguez, embora não seja da mesma substância, porque da embriaguez dos alumbrados estava ausente o vinho. Pelo menos o vinho em sentido restrito.
Devo ressalvar todavia que alguns altercaram com argumentos consistentes e continuam a altercar que na origem do alumbramento dos santos, se não estivera o vinho, reconheciam-se sintomas de consumo, intencional ou não, de substâncias que hoje designamos alucinogéneas.
Não é este contudo, nem ainda, o assunto que nos interessa e que congemina este episódio.
O que nos interessa é saber como o alumbramento dos santos se comunicou e ofereceu os tópicos ao êxtase dos ébrios, sejam os pinceis, sejam os pintores. Ou, vice versa, o êxtase dos santos contaminou o alumbramento dos ébrios. Qual a correspondência entre a alusão, ou ilusão, que os pintores nos legaram através da imagem e as alusões que os santos, ou os seus cronistas e intérpretes legaram aos pintores através do verbo.
A ambiguidade desta relação só pode ser expressa se no episódio fizermos intervir o observador. O observador da pintura, claro, porque aos pinceis e aos pintores já se perdeu o rasto, muito mais ao santo. Resta-nos então imaginar um observador surpreendido pelo arrebate em que o despenhou o confronto com a imagem e que tem que afogar a angústia num copito, dois ou três, ou num almude de vinho.
E então passaria de novo da embriaguês dos pinceis ou dos pintores para o alumbramento do anacoreta. Se participasse da habilidade para se passear sobre a tela ou o painel espraiando as tintas, aonde iria a coisa parar?
Mas como nem tem a habilidade dos pintores, nem desvendaria jamais o paradeiro dos pinceis, ficará prisioneiro do estado de alumbramento do anacoreta, enriquecido pelas referências sensoriais das imagens que os pinceis, movidos pelas mãos dos pintores, depositaram nas tábuas. A embriaguês aglutinou-se com o próprio alumbramento, porque se tornou no seu motivo.
Já não temos um anacoreta alucinado nem um pintor ébrio, ou uma academia de pintores cegos guiados por uns pinceis embriagados, mas um observador alucinado, não pelas suas próprias fantásticas miragens, mas pelos arrebates do anacoreta interpretados pela bebedeira dos pintores ou dos pinceis.

Mas falta-nos ainda um golpe de asa para atingirmos a derradeira ambiguidade desta relação. E o caso é que o observador mal vê o santo, perdido ou quase ausente na barafunda daquele caos. Está cego já também. Quando olha, de relance, o que vê é a alucinação, seja ela fruto das mortificações místicas do eremita ou da embriagues do pintor. Até atingir a percepção do santo, tem que examinar com todo o detalhe cada um dos mafarricos. Quando o enxerga, o santo é já quase uma excrecência. E nem se pode garantir que aquele homem prostrado e indiferente seja o santo, ou se é uma ilusão ou manifestação de qualquer dos outros mafarricos, a soberba em si própria, e o santo nem lá está, ficou de fora a observar as suas alucinações.
E então o santo é simultaneamente Antão, o pintor e o observador, todos e cada um ausentes do barulho.

Mas uma coisa é certa. Alguém viu ou imaginou aquele caos e cada um dos seus pormenores, a relação entre eles e a sua coesão. A tendência de um erudito é a de recuar, em marcha à rectaguarda, até à fonte de onde brotou a inspiração iconográfica, aquele diabo remonta a um velho manuscrito apocalíptico iluminado do Século XII, aquela exótica flor ornamentava um livro de horas do Século XIV, aquele episódio grotesco foi retomado de uma lenda ou de um conto popular, por aí adiante, até dissecar e analisar todo o universo representado, decomposto nas suas partes, cada uma acompanhada da sua própria hermenêutica.
E então deixamos de ter uma pintura e uma representação, temos duas centenas intrometidas umas com as outras de cambulhada, sem compreendermos sequer o sentido da sua associação. Deixamos de ter uma bebedeira mas cem, cada uma com o seu episódio e o seu tópico, que o pintor reuniu na bebedeira derradeira, cujo pretexto foi o santo. E teremos ainda as bebedeiras que a pintura suscitar nos observadores.
Nem o quadro é já uma relíquia, é um pretexto. E não será isso afinal uma relíquia, um pretexto?
E não será isso afinal a embriaguês, um pretexto? E não será isso afinal o êxtase do anacoreta místico, um pretexto?
Ora, aí está um mistério sem solução.
Como dizia, ébrios eram os pinceis.

Ora, foram ainda estes pinceis, embriagados, que, vindos ninguém sabe de onde, mas já na mão de Jerónimo, congeminaram a ideia de representar a ceia eucarística sobreposta, como um palimpsesto, às bodas de Caná. Talvez a blasfema ideia remonte às tentações do santo. É certo que dizem que remontava muito para trás do pintor.
Mas assim, com a expressão imediata, todavia astuta, de Jerónimo, ninguém até então se atrevera a associar a eucaristia à transmutação da água e às bodas místicas de Jesus.
Como os pinceis eram ébrios e o pintor entornava uns canjirões de vinho, ninguém se espantou porque o Mestre aparecia duplicado na mesma cena e episódio, como o taumaturgo que opera o milagre e abençoa a cerimónia e como o nubente. Tratava-se apenas do mais imediato dos sintomas visíveis da embriaguês, a duplicação da imagem.
Este singelo tema mereceria, por si só, se se tratara de alguém que nada mais tivesse que fazer, um tratado com uns centos de páginas. Mas eu tenho pouco tempo já para realizar umas tantas coisas que me impus até me ir embora, tenho que sintetizar o assunto com duas ou três pinceladas.
A primeira é que, sobre a mesa dos convivas, só se apresenta pão e vinho, este sugerido pelos copos, mais do que pelo líquido, ou pelo espírito, que é invisível. Por detrás da cerimónia desenvolve-se o tema da gula, das iguarias e de outras terrenais infernidades, como se o espaço se apresentasse ao pintor, ou aos pinceis, em duas dimensões, graficamente contíguas, mas semanticamente incomunicáveis.
Para aludir explicitamente à eucaristia, o pintor ainda colocou sobre a mesa uma patena e, no centro da celebração, diante da noiva e de costas, uma misteriosa criança, coroada aparentemente de ramos de oliveira e envergando as vestes de diácono, ergue a píxide, como o sacerdote no instante ritual da elevação.
Quase em primeiro plano, uma cortesã, que se antecipou, de olhos semicerrados como se ausente do episódio, bebe já de uma taça. Eu quase juraria que se trata da mesma cortesã que noutra obra prima do pintor, representando o transporte da cruz, reaparece, no papel de Verónica, no canto inferior esquerdo, de olhos cerrados e alheia ao drama, como se tivera sido surpresa no seu caminho pela passagem do macabro cortejo, em direcção inversa. É no lenço que exibe, em primeiro plano, com o rosto de Jesus impresso, que se alude neste caso à duplicação da imagem.
Na sua indiferença ou soberba, é quase como o anacoreta plantado no episódio das suas alucinações. Foi ela quem inventou, ou viu aquilo tudo. Fica o pintor perdoado. Os pinceis também.
Pondo a matéria em ordem, é de novo um pretexto. Uma advertência ao observador, como se nos dissesse: ébrio és tu.


Como uma nação inteira se embriagou ao contemplar umas tábuas pintadas, achadas ao acaso, de que ninguém sabe a proveniência, ao ver nelas aparecer duplicada a imagem de um santo.

E como ninguém queria acreditar que o pintor era ébrio, compuseram então com as seis tábuas de carvalho que serviam de mesa nos andaimes da obra do antigo Palácio Patriarcal em São Vicente de Fora, dois trípticos. Tiveram que dar uns pontapés nos cânones da perspectiva, mas, com as seis tábuas recuperadas dos escombros, duas mais largas e quatro mais estreitas, conseguiram distorcer a composição, um santo para um lado, outro para o outro. Como assim recomposto o conjunto formava dois trípticos, ficara ainda fora de equação a bebedeira.
Altercava-se tão só acerca de onde poderiam provir aquelas tábuas assim tão bem pintadas e compostas, quem as pintara, que complexo cerimonial estava representado em cada conjunto de três, em que intervinha todavia o mesmo santo, ricamente paramentado. Não parecia estranho a ninguém que o mesmo santo aparecesse representado repetidamente, paramentado com as mesmas vestes, ou similares, em dois trípticos autónomos, em duas cerimónias porventura contíguas, envolvendo todavia outros circunstantes.
Passou-se a disputar sobre quem as vira primeiro naquele degradante preparo, se um pintor que passava por acaso alertado por um mestre de talha, se um arcebispo diligente que as mandara recolher com mais uns trastes num corredor, sem lhes prestar todavia grande atenção.
Foram necessários quase dez anos para que um estudioso, mais astuto, ficasse pregado no chão a olhar surpreendido, porque ali estava a nação inteira, reconhecendo, de imediato, um dos ínclitos infantes. Mais dez anos, aparecia um novo erudito capaz de identificar o pintor e com poder e estatuto para as disputar para o património público.
A bebedeira nacional ficou por então circunscrita ao reconhecimento documentado de que havia uma águia lusa na pintura primitiva do Século XV, que conseguira, para mais, surpreender o próprio espírito da nação, toda arrumadinha e em pose, a olhar para o passarinho. Que embevecimento!
Fosse quem fosse que as vira primeiro e as salvara de darem alento ao lume, na fogueira que os operários acendiam de manhã para aquecer as mãos e assar os chouriços, quem lhes alcançara o sentido fora aquele cavalheiro. Por isso, o seu nome e alguns arrebates que lhe tomaram logo de assalto a mente, nunca mais se descolaram das tábuas. Nem o nome do santo, nem o nome do pintor que lhes propôs para autor.
E assim passaram à história atravessando gerações de polémicas, altercações e bofetões. Os Painéis de São Vicente, do pintor Nuno Gonçalves.

Entretanto, trinta anos ainda depois, apareceu mais um pintor, poeta e tudo, que se abeirou das tábuas e disse, porventura só para incomodar e por impertinência, todavia com razão, que eram todos tolos, sabiam muito acerca de muita coisa, liam muitos livros e consultavam muitas crónicas e tombos, mas eram incapazes de realizar percepções imediatas de geometria e perspectiva. Tinham trocado tudo. Aquilo não eram dois trípticos, era uma única composição representando uma única cerimónia e momento, no mesmo espaço, e o santo, fosse ele qual fosse, estava duplicado. A nação inteira estava ali, no mesmo momento e espaço, não fora talhada ao meio, metade para um lado, outra para outro, mas convergia toda para o centro, em cujo eixo, uns metros mais atrás, onde estávamos agora nós a observar, teria estado pintor a pintar e o mestre da cerimônia a distribuir os lugares segundo o protocolo e condição de cada um.

Também há cerca de trinta anos, o assunto dos Painéis de São Vicente pouco me interessava. Que lá estivesse o São Vicente, o ínclito Infante, um rei qualquer que fosse, uma rainha, ou um anónimo pescador da faina do Tejo ou do Oceano, o que interessava isso ao futuro de uma nação tão pobre e conturbada, que invocava um glorioso passado para mitigar a míngua do presente, do futuro porventura? Um bom copito de vinho tinto era do que todos precisávamos.
E naquela tarde calhou-me ter que fazer companhia a um sobrinho, um petiz de cinco anos com olhos estáticos cor de mar, mas astuto e perspicaz. Havia pouco para fazer e não faz qualquer mal a uma criança perder umas horas num museu, sobretudo numa tarde de canícula. Deve ser um aborrecimento para ela, mas sempre nos alivia a nós. Ora, o que estava mais à mão era o Museu das Janelas Verdes.
Parei em frente da composição e pensei que, se aquilo era português, então eu não era.

- Oh, tio. Dois meninos gémios!

- Gémios?

- Pois. Não vês? Aqueles meninos são gémios...

- Não, são um santo.

- Um?...

O rapaz olhou para o tecto com uma expressão complacente e deixou escapar uma gargalhadinha irritante.

- Tens muita gracinha...

- Ó tio, o meu pai conta uma anedota muita engraçada acerca dos bêbados que vêem as coisas a dobrar. Parece que há bêbados que vêem uma coisa só aonde estão duas. Ali estão dois meninos gémios, dois meninos gémios, tio. Iguaizinhos. Podem ser santos, mas são dois e gémios.
Se o tio tem razão e é só um santo, então era o pintor quem estava bêbado. Eu não. Sou muito pequenino.

Ora, como o que mais me satisfaz o paladar é um, ou dois, ou três copos de bom vinho e ainda sou dado, de quando em quando, a uns arrebates místcos, um assunto que sempre me interessou foi o da ilusão e da sua hermenêutica, tanto quanto o da sua terapia. Foi este episódio que me suscitou o interesse consequente e quase cirúrgico pelos Painéis de São Vicente e por um certo pintor a que chamaram Nuno Gonçalves.
Bem, a mim não me interessava muito a identificação do santo. Esse problema ficara resolvido pelo rapaz, com o critério da sua ingénua e imediata hermenêutica. Só havia que complementá-la com os conhecimentos relativamente exaustivos que eu adquirira já nos territórios pios da hagiografia, pois passei muito tempo em companhia de padres, altercando sempre, todavia, com eles, sobre questões de fé e de razão. Na verdade, qualquer catequista de aldeia sabe que só existem dois santos gémios na hagiografia tradicional, os meninos Cosme e Damião, mártires e diáconos, associados sempre ao patrocínio da medicina, da cirurgia e, por vezes, de outras bruxarias terapêuticas, ou seja, em síntese, a cura.
Bem, a mim não me interessava também muito a identificação do pintor. Que fosse então Nuno Gonçalves. Não me interessava a identificação dos infantes, dos reis, das rainhas, dos prelados, nem tão pouco o sentido da cerimónia representada.
O que me interessava era o que os outros viam e porquê. E como é que podiam ver tudo, menos o que era imediato. E a primeira coisa que não viam era que ali não estava um santo, estavam dois e eram gémios. Se assim não fora, ou o pintor era ébrio ou andava a nação toda embriagada.
Para que não andassem por aí a dizer que ébrio era eu, calei-me sobre o assunto, cultivei-o no segredo e intimidade das minhas cogitações. Fiquei a observar, não as tábuas, mas o ror de gente que se ajuntava em seu redor para decifrar qual era aquele santo que um pintor vira a dobrar. Em conformidade com o santo que cada um visse, identificaria o pintor, o momento, os circunstantes, o desígnio que a obra propunha ao sentido da nação.
Uma bebedeira? Não, um pretexto para centos delas.
Tudo o resto é então excrecente. Para quem atingiu o estado de embriaguês que lhe permitiu ver um santo onde estão dois, pode passar ao estado alucinatório de ver um pintor, meia dúzia de reis, uma dúzia de infantes, três ou quatro bispos, um pescador que viu em Peniche, outro em Sesimbra, Sua Excelência o Presidente da Câmara de Lisboa, o Presidente do Conselho de Ministros, o Procurador Geral da República, o arrumador de automóveis do Jardim do Príncipe Real, a nação inteira afinal. Pode mesmo ver-se a si próprio a espreitar por detrás da fila, no plano derradeiro, no bordo superior de uma das tábuas.
Apareceu entretanto uma investigadora dotada de alguma lucidez, suficiente, pelo menos, para clamar que ali não estava um santo, mas dois. Ora, parecendo todavia que era a primeira pessoa que olhava para aquilo em absoluto estado de sobriedade, sem vinho ou qualquer outro medium alucinatório, só tinha reparado que a pintura se estruturava em torno de dois santos e não de um, porque no canto superior esquerdo de um dos painéis centrais identificara outros dois gémios, ou manos, ou génios, da sua própria genealogia. Vai daí, num instante, despenhou-se de novo na alucinação da embriaguês. Os santos eram Crispim e Crispiano, porque a sua presença tinha que atribuir sentido a todos os pressupostos já acumulados, mais a umas novidades que agora trazia à lide.


Os bêbados e o fado. Como um pintor conseguiu compilar o estado de alma de uma nação inteira outrora gloriosa na condição sintética da decrepitude derradeira.


Na obra de um génio, nem tudo revela o mesmo talento. Houve mesmo génios que se imortalizaram com uma só obra, duas ou três, embora por vezes tenham realizado um cento, ou mais.
A maior parte das vezes depende da condição e do contexto em que tiveram que aplicar as suas habilidades. Os génios, antes de o serem, são ou foram homens como nós outros, que capitularam face ao frio e à fome, ao lamuriar da canalha de boca aberta a clamar por paparoca, ao cansaço, ao desalento. É assim a vida.
José Malhoa era quase um escuteiro exemplar. Deve ter pintado um quadro ou feito um rabisco por cada um dos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano que viveu após começar a pincelar, fora os bissextos. Dizem por aí que alguns ainda lhe fizeram e, porventura, vão fazendo o obséquio de pintar uns mais. Geralmente, pintava o que lhe pediam, muitos retratos de gente de condição. Nos tempos mortos pintava de turbilhão o que lhe brotava da mente.
Há duas obras que sintetizam o seu talento e o seu génio.
As suas mais consagradas obras são Os Bêbados e O Fado. Ora aí estão duas referências que já associáramos na apresentação do nosso assunto.
Romarias e procissões, bêbados e fado. Os touros, cavaleiros e reis ficavam para os outros.
E imaginemos então a sala do Museu das Janelas Verdes com o políptico de São Vicente do pintor Nuno Gonçalves ladeado pelas duas telas do Malhoa, de um lado Os Bêbados, do outro O Fado.
E então revelar-se-ia o mistério. Fora aquela nação retratada pelo Malhoa, desalinhada e descomposta, surpreendida porque nem reparara que estava a ser vigiada pelo olhar cirúrgico do pintor, que inventara, entre a bebedeira e o fado, romarias e procissões, aqueloutra, toda alinhada e composta para a fotografia, em redor de um santo ou dois.
E então o fadista do Malhoa foi parar, curado já da cabotinice da sanguínea idade, uns anos mais velho, aos painéis. Plantado mesmo ao lado do santo, um pouco por detrás, de mãos postas e expressão sóbria, com um chapeirão de abas largas.
Ao outro lado do mesmo santo, já também avançada na idade e arrepesa da boémia, bem arrecatada em vestes quase monásticas, foi parar a sua companheira.
Os santos, esses, é que se evadiram do díptico do Malhoa. Ficaram na companhia do pintor e dos pinceis, do lado de cá.