segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Vinho (extracto)

Manuel de Castro Nunes


O vinho

Quatro episódios de embriaguez





Discurso prévio acerca do vinho e dos contextos e rituais do seu consumo


No senso comum, inspirado por profundas intrusões atávicas, as consequências do consumo do vinho até ao ultrapassar do limiar da lucidez manifesta-se em reacções antitéticas, bem expressas no juízo popular, este tem bom e aqueloutro mau vinho. Quer dizer que a embriaguez, ou o estado de torpor, exaltação, ou euforia que a antecede, se revela em alguns em manifestações de bonomia, em outros de furor.
Na cultura latina, imbuída de senso comum e espírito trivial, consagrou-se ainda a sentença in vino veritas. Quer dizer que o vinho obriga-nos a manifestar aqueles aspectos do nosso carácter que omitimos sob as roupagens com que nos apresentamos aos outros, ou mesmo, porventura ou por vezes, a nós próprios. Poderíamos até desta trivial sentença deduzir que ninguém se conheceu verdadeiramente sem ter perscrutado o limiar da embriaguez.
É deste sentido que verte o ditado popular, o vinho é que educa, o fado que instrui. E educa nesse exacto sentido, de que nos suscita ou proporciona o conhecimento profundo de nós próprios. Se por fado entendermos a poesia, passaremos a ter matéria que remonta aos mistérios órficos.
O vinho. O universo de alusões que evoca o vinho, numa multiplicidade quase inalcançável de temas, a mitologia, os rituais, a sociabilidade trivial, ou cerimonial, a guerra, a sobrevivência quotidiana.
Anestesia e euforia. Evasão, acutilância, dependência, trevas, distorção.
A dupla, ou múltipla visão, em dois sentidos, o da repetição, em planos diferentes de focagem, do manifestado e o da aptidão para capturar duas, ou mais manifestações de uma única coisa. O embriagado e o louco, com a sua carga de transcendência, o truão, o ridículo, o temerário e o prostrado.
A multiplicidade de significados e de sentidos.
O vinho, com o seu calor, a sua espessura, a sua cor, e o sangue dos imolados, como substituto ou como alusão. Ecce Sanguis Meus. O cálice.
O vinho e o álcool, no sentido alquímico, como o vapor que sobe e que eleva, o medium primordial da transmutação. A água pesada, sublunar e especular que Cristo transmutou em vinho, ou água viva, na boda dos esponsais.
E a embriaguez. Que tem o vinho que ver com a embriaguez?
A embriaguez é apenas um dos estados acidentais que podem advir da relação com o vinho. E, ainda assim, pode, no horizonte maniqueísta que se introduziu nos nossos juízos, ser boa ou má. Um estado de elevação ou um estado de queda.
No que toca ao vinho e à profundidade da sua substância cultural, histórica e sociológica, a embriaguez é um episódio. Ou dois, ou três, ou um minúsculo milhão que nem perturba o infinito.
Em que estado de euforia, em sentido literal ou alegórico, estaria Cristo quando proclamou: - Tomai, este é o meu sangue.?
Como antítese apresentou o pão e disse: - Tomai, esta é a minha carne.
E num instante, na opinião dos hermeneutas e dos teólogos, disse tudo. E pronto.


Como Antão, anacoreta solitário, foi tentado em sonhos e das fantásticas visões que o atormentaram.

Dizem, os hagiógrafos e cronistas, que Antão viveu muito tempo, mais de cem anos, a maior porção deles na solidão do seu abrigo na Tebaida, exposto aos rigores da vida selvagem, ao calor e ao frio, à sede e à fome. O que se diz de um homem que viveu há tanto tempo, solitário ainda por cima, sem ninguém a espiar as suas intimidades, pode suscitar algumas suspeitas. Mas, na verdade, para quem ouve ou lê estas histórias edificantes muito mais interessa o que se disse e diz, do que o homem.
Esse é inacessível, lá ficou sepultado algures, ainda que, de quando em quando, possam ressurgir, como para atestar a verossimilhança do que se vai dizendo, umas relíquias, um fragmento de um osso, um retalho do burel, ou até um pedaço de lama seca que guarda a impressão do rasto de uma sandália. E perante estes atestados materiais tudo o resto deles sorve a condição do verosímil.
Mas para lá do que se disse e escreveu, ainda houve quem representasse, pela imagem, a intimidade dos seus visionários e solitários arrebates. E aí, onde a imagem intervem nas formas de dizer, nem vale a pena contestar.
Ora é o caso de um pintor holandês, que por acaso, ou não, se chamou, ou lhe chamaram, Jerónimo e que viveu porventura menos de metade da vida de Antão, mas teve tempo ainda para lhe compilar os sonhos, visões e, na opinião de alguns até, algumas perversões da alma.
E, como o anacoreta vivia retirado em solidão nas profundezas do deserto, é bem mais provável que tenha sido o pintor quem bebia um copito a mais. Porque até então o que se sabia, transmitido pelo seu breve companheiro Atanásio, era que o pobre monge fora sucessivamente assediado por inauditas tentações dos demónios. Com o Sol a torrar-lhe os miolos, no êxtase das febres, bem poderia ter mergulhado nuns mirabolantes delírios, porventura tenebrentos, num estado semelhante ao da embriaguês, mas sem vinho.
Ora, se da natureza explícita das alucinações do eremita nada sabemos senão o que Atanásio relata, os efeitos da bebida na alucinada imaginação do mestre ficaram visualmente bem documentados e veneram-se ainda hoje como relíquias de outra espécie, em Lisboa, em Madrid e em muitos outros lugares. Ambíguas, porque tanto podem ser tidas como relíquias do santo, como do pintor.

Bem, até aqui, temos uma história trivial de um pintor com pendor para a bebida, que, no domínio do senso comum, se constituíu na hipótese mais coerente para sustentar o inesperado na obra de muitos génios, e que para suavizar as reacções dos circunstantes à sua cosmogenia ébria e inebriante a atribuiu a um santo, erradicando-a do horizonte do pecado ou transgressão, senão em espécie, em género pelo menos. Até porque o santo, assediado todavia por toda aquela cáfila de mafarricos, foi capaz de lhes opor a tenacidade das suas pias convicções. Não foi o caso do pintor, que, durante a sua breve vida, não foi capaz de se libertar das trevas com que a bebida lhe turvava um são alcance da vista sobre as coisas simples. Sempre que pegava no pincel, saiam-lhe para as tábuas os turbilhões de seres inimagináveis com que o abominável atormentara o pobre anacoreta.
Mas o que pouca gente sabe é que o pintor era cego. Em verdade, ébrios eram os pinceis.
Prova do que proponho é que, passados pouco mais de dez anos, andavam já nas mãos de outro mestre, um tal Pedro, sujeitando de novo os seus gestos e movimentos e a sua mente não menos perturbada às alucinações da embriaguez. Tal como as sandálias ou o burel do santo anacoreta, os pinceis alcançam limites de sobrevivência terrenal muito mais amplos do que os da vida humana. Tornam-se relíquias.
Atribui-se a Jesus a parábola que alerta os homens para o facto de que um cego, ou dois, ou uma fila deles guiados por outro cego se precipitarão no primeiro abismo que os surpreender na carreira.
Imaginem só uma academia inteira de pintores ébrios, trespassando mesmo várias gerações, guiados pelos mesmos pinceis. Que foram, por sua vez, buscar inspiração às alucinações de um anacoreta solitário atormentado pelo demo e que se evadira dos terrenais ermos havia mais de mil anos.

Bem, mas esta história não pretende na verdade versar o tema da embriaguez dos pinceis, nem dos pintores. Foi justamente o alumbramento dos santos o que nos interessou. Mais propriamente de Antão. O alumbramento é da mesma natureza da embriaguez, embora não seja da mesma substância, porque da embriaguez dos alumbrados estava ausente o vinho. Pelo menos o vinho em sentido restrito.
Devo ressalvar todavia que alguns altercaram com argumentos consistentes e continuam a altercar que na origem do alumbramento dos santos, se não estivera o vinho, reconheciam-se sintomas de consumo, intencional ou não, de substâncias que hoje designamos alucinogéneas.
Não é este contudo, nem ainda, o assunto que nos interessa e que congemina este episódio.
O que nos interessa é saber como o alumbramento dos santos se comunicou e ofereceu os tópicos ao êxtase dos ébrios, sejam os pinceis, sejam os pintores. Ou, vice versa, o êxtase dos santos contaminou o alumbramento dos ébrios. Qual a correspondência entre a alusão, ou ilusão, que os pintores nos legaram através da imagem e as alusões que os santos, ou os seus cronistas e intérpretes legaram aos pintores através do verbo.
A ambiguidade desta relação só pode ser expressa se no episódio fizermos intervir o observador. O observador da pintura, claro, porque aos pinceis e aos pintores já se perdeu o rasto, muito mais ao santo. Resta-nos então imaginar um observador surpreendido pelo arrebate em que o despenhou o confronto com a imagem e que tem que afogar a angústia num copito, dois ou três, ou num almude de vinho.
E então passaria de novo da embriaguês dos pinceis ou dos pintores para o alumbramento do anacoreta. Se participasse da habilidade para se passear sobre a tela ou o painel espraiando as tintas, aonde iria a coisa parar?
Mas como nem tem a habilidade dos pintores, nem desvendaria jamais o paradeiro dos pinceis, ficará prisioneiro do estado de alumbramento do anacoreta, enriquecido pelas referências sensoriais das imagens que os pinceis, movidos pelas mãos dos pintores, depositaram nas tábuas. A embriaguês aglutinou-se com o próprio alumbramento, porque se tornou no seu motivo.
Já não temos um anacoreta alucinado nem um pintor ébrio, ou uma academia de pintores cegos guiados por uns pinceis embriagados, mas um observador alucinado, não pelas suas próprias fantásticas miragens, mas pelos arrebates do anacoreta interpretados pela bebedeira dos pintores ou dos pinceis.

Mas falta-nos ainda um golpe de asa para atingirmos a derradeira ambiguidade desta relação. E o caso é que o observador mal vê o santo, perdido ou quase ausente na barafunda daquele caos. Está cego já também. Quando olha, de relance, o que vê é a alucinação, seja ela fruto das mortificações místicas do eremita ou da embriagues do pintor. Até atingir a percepção do santo, tem que examinar com todo o detalhe cada um dos mafarricos. Quando o enxerga, o santo é já quase uma excrecência. E nem se pode garantir que aquele homem prostrado e indiferente seja o santo, ou se é uma ilusão ou manifestação de qualquer dos outros mafarricos, a soberba em si própria, e o santo nem lá está, ficou de fora a observar as suas alucinações.
E então o santo é simultaneamente Antão, o pintor e o observador, todos e cada um ausentes do barulho.

Mas uma coisa é certa. Alguém viu ou imaginou aquele caos e cada um dos seus pormenores, a relação entre eles e a sua coesão. A tendência de um erudito é a de recuar, em marcha à rectaguarda, até à fonte de onde brotou a inspiração iconográfica, aquele diabo remonta a um velho manuscrito apocalíptico iluminado do Século XII, aquela exótica flor ornamentava um livro de horas do Século XIV, aquele episódio grotesco foi retomado de uma lenda ou de um conto popular, por aí adiante, até dissecar e analisar todo o universo representado, decomposto nas suas partes, cada uma acompanhada da sua própria hermenêutica.
E então deixamos de ter uma pintura e uma representação, temos duas centenas intrometidas umas com as outras de cambulhada, sem compreendermos sequer o sentido da sua associação. Deixamos de ter uma bebedeira mas cem, cada uma com o seu episódio e o seu tópico, que o pintor reuniu na bebedeira derradeira, cujo pretexto foi o santo. E teremos ainda as bebedeiras que a pintura suscitar nos observadores.
Nem o quadro é já uma relíquia, é um pretexto. E não será isso afinal uma relíquia, um pretexto?
E não será isso afinal a embriaguês, um pretexto? E não será isso afinal o êxtase do anacoreta místico, um pretexto?
Ora, aí está um mistério sem solução.
Como dizia, ébrios eram os pinceis.

Ora, foram ainda estes pinceis, embriagados, que, vindos ninguém sabe de onde, mas já na mão de Jerónimo, congeminaram a ideia de representar a ceia eucarística sobreposta, como um palimpsesto, às bodas de Caná. Talvez a blasfema ideia remonte às tentações do santo. É certo que dizem que remontava muito para trás do pintor.
Mas assim, com a expressão imediata, todavia astuta, de Jerónimo, ninguém até então se atrevera a associar a eucaristia à transmutação da água e às bodas místicas de Jesus.
Como os pinceis eram ébrios e o pintor entornava uns canjirões de vinho, ninguém se espantou porque o Mestre aparecia duplicado na mesma cena e episódio, como o taumaturgo que opera o milagre e abençoa a cerimónia e como o nubente. Tratava-se apenas do mais imediato dos sintomas visíveis da embriaguês, a duplicação da imagem.
Este singelo tema mereceria, por si só, se se tratara de alguém que nada mais tivesse que fazer, um tratado com uns centos de páginas. Mas eu tenho pouco tempo já para realizar umas tantas coisas que me impus até me ir embora, tenho que sintetizar o assunto com duas ou três pinceladas.
A primeira é que, sobre a mesa dos convivas, só se apresenta pão e vinho, este sugerido pelos copos, mais do que pelo líquido, ou pelo espírito, que é invisível. Por detrás da cerimónia desenvolve-se o tema da gula, das iguarias e de outras terrenais infernidades, como se o espaço se apresentasse ao pintor, ou aos pinceis, em duas dimensões, graficamente contíguas, mas semanticamente incomunicáveis.
Para aludir explicitamente à eucaristia, o pintor ainda colocou sobre a mesa uma patena e, no centro da celebração, diante da noiva e de costas, uma misteriosa criança, coroada aparentemente de ramos de oliveira e envergando as vestes de diácono, ergue a píxide, como o sacerdote no instante ritual da elevação.
Quase em primeiro plano, uma cortesã, que se antecipou, de olhos semicerrados como se ausente do episódio, bebe já de uma taça. Eu quase juraria que se trata da mesma cortesã que noutra obra prima do pintor, representando o transporte da cruz, reaparece, no papel de Verónica, no canto inferior esquerdo, de olhos cerrados e alheia ao drama, como se tivera sido surpresa no seu caminho pela passagem do macabro cortejo, em direcção inversa. É no lenço que exibe, em primeiro plano, com o rosto de Jesus impresso, que se alude neste caso à duplicação da imagem.
Na sua indiferença ou soberba, é quase como o anacoreta plantado no episódio das suas alucinações. Foi ela quem inventou, ou viu aquilo tudo. Fica o pintor perdoado. Os pinceis também.
Pondo a matéria em ordem, é de novo um pretexto. Uma advertência ao observador, como se nos dissesse: ébrio és tu.


Como uma nação inteira se embriagou ao contemplar umas tábuas pintadas, achadas ao acaso, de que ninguém sabe a proveniência, ao ver nelas aparecer duplicada a imagem de um santo.

E como ninguém queria acreditar que o pintor era ébrio, compuseram então com as seis tábuas de carvalho que serviam de mesa nos andaimes da obra do antigo Palácio Patriarcal em São Vicente de Fora, dois trípticos. Tiveram que dar uns pontapés nos cânones da perspectiva, mas, com as seis tábuas recuperadas dos escombros, duas mais largas e quatro mais estreitas, conseguiram distorcer a composição, um santo para um lado, outro para o outro. Como assim recomposto o conjunto formava dois trípticos, ficara ainda fora de equação a bebedeira.
Altercava-se tão só acerca de onde poderiam provir aquelas tábuas assim tão bem pintadas e compostas, quem as pintara, que complexo cerimonial estava representado em cada conjunto de três, em que intervinha todavia o mesmo santo, ricamente paramentado. Não parecia estranho a ninguém que o mesmo santo aparecesse representado repetidamente, paramentado com as mesmas vestes, ou similares, em dois trípticos autónomos, em duas cerimónias porventura contíguas, envolvendo todavia outros circunstantes.
Passou-se a disputar sobre quem as vira primeiro naquele degradante preparo, se um pintor que passava por acaso alertado por um mestre de talha, se um arcebispo diligente que as mandara recolher com mais uns trastes num corredor, sem lhes prestar todavia grande atenção.
Foram necessários quase dez anos para que um estudioso, mais astuto, ficasse pregado no chão a olhar surpreendido, porque ali estava a nação inteira, reconhecendo, de imediato, um dos ínclitos infantes. Mais dez anos, aparecia um novo erudito capaz de identificar o pintor e com poder e estatuto para as disputar para o património público.
A bebedeira nacional ficou por então circunscrita ao reconhecimento documentado de que havia uma águia lusa na pintura primitiva do Século XV, que conseguira, para mais, surpreender o próprio espírito da nação, toda arrumadinha e em pose, a olhar para o passarinho. Que embevecimento!
Fosse quem fosse que as vira primeiro e as salvara de darem alento ao lume, na fogueira que os operários acendiam de manhã para aquecer as mãos e assar os chouriços, quem lhes alcançara o sentido fora aquele cavalheiro. Por isso, o seu nome e alguns arrebates que lhe tomaram logo de assalto a mente, nunca mais se descolaram das tábuas. Nem o nome do santo, nem o nome do pintor que lhes propôs para autor.
E assim passaram à história atravessando gerações de polémicas, altercações e bofetões. Os Painéis de São Vicente, do pintor Nuno Gonçalves.

Entretanto, trinta anos ainda depois, apareceu mais um pintor, poeta e tudo, que se abeirou das tábuas e disse, porventura só para incomodar e por impertinência, todavia com razão, que eram todos tolos, sabiam muito acerca de muita coisa, liam muitos livros e consultavam muitas crónicas e tombos, mas eram incapazes de realizar percepções imediatas de geometria e perspectiva. Tinham trocado tudo. Aquilo não eram dois trípticos, era uma única composição representando uma única cerimónia e momento, no mesmo espaço, e o santo, fosse ele qual fosse, estava duplicado. A nação inteira estava ali, no mesmo momento e espaço, não fora talhada ao meio, metade para um lado, outra para outro, mas convergia toda para o centro, em cujo eixo, uns metros mais atrás, onde estávamos agora nós a observar, teria estado pintor a pintar e o mestre da cerimônia a distribuir os lugares segundo o protocolo e condição de cada um.

Também há cerca de trinta anos, o assunto dos Painéis de São Vicente pouco me interessava. Que lá estivesse o São Vicente, o ínclito Infante, um rei qualquer que fosse, uma rainha, ou um anónimo pescador da faina do Tejo ou do Oceano, o que interessava isso ao futuro de uma nação tão pobre e conturbada, que invocava um glorioso passado para mitigar a míngua do presente, do futuro porventura? Um bom copito de vinho tinto era do que todos precisávamos.
E naquela tarde calhou-me ter que fazer companhia a um sobrinho, um petiz de cinco anos com olhos estáticos cor de mar, mas astuto e perspicaz. Havia pouco para fazer e não faz qualquer mal a uma criança perder umas horas num museu, sobretudo numa tarde de canícula. Deve ser um aborrecimento para ela, mas sempre nos alivia a nós. Ora, o que estava mais à mão era o Museu das Janelas Verdes.
Parei em frente da composição e pensei que, se aquilo era português, então eu não era.

- Oh, tio. Dois meninos gémios!

- Gémios?

- Pois. Não vês? Aqueles meninos são gémios...

- Não, são um santo.

- Um?...

O rapaz olhou para o tecto com uma expressão complacente e deixou escapar uma gargalhadinha irritante.

- Tens muita gracinha...

- Ó tio, o meu pai conta uma anedota muita engraçada acerca dos bêbados que vêem as coisas a dobrar. Parece que há bêbados que vêem uma coisa só aonde estão duas. Ali estão dois meninos gémios, dois meninos gémios, tio. Iguaizinhos. Podem ser santos, mas são dois e gémios.
Se o tio tem razão e é só um santo, então era o pintor quem estava bêbado. Eu não. Sou muito pequenino.

Ora, como o que mais me satisfaz o paladar é um, ou dois, ou três copos de bom vinho e ainda sou dado, de quando em quando, a uns arrebates místcos, um assunto que sempre me interessou foi o da ilusão e da sua hermenêutica, tanto quanto o da sua terapia. Foi este episódio que me suscitou o interesse consequente e quase cirúrgico pelos Painéis de São Vicente e por um certo pintor a que chamaram Nuno Gonçalves.
Bem, a mim não me interessava muito a identificação do santo. Esse problema ficara resolvido pelo rapaz, com o critério da sua ingénua e imediata hermenêutica. Só havia que complementá-la com os conhecimentos relativamente exaustivos que eu adquirira já nos territórios pios da hagiografia, pois passei muito tempo em companhia de padres, altercando sempre, todavia, com eles, sobre questões de fé e de razão. Na verdade, qualquer catequista de aldeia sabe que só existem dois santos gémios na hagiografia tradicional, os meninos Cosme e Damião, mártires e diáconos, associados sempre ao patrocínio da medicina, da cirurgia e, por vezes, de outras bruxarias terapêuticas, ou seja, em síntese, a cura.
Bem, a mim não me interessava também muito a identificação do pintor. Que fosse então Nuno Gonçalves. Não me interessava a identificação dos infantes, dos reis, das rainhas, dos prelados, nem tão pouco o sentido da cerimónia representada.
O que me interessava era o que os outros viam e porquê. E como é que podiam ver tudo, menos o que era imediato. E a primeira coisa que não viam era que ali não estava um santo, estavam dois e eram gémios. Se assim não fora, ou o pintor era ébrio ou andava a nação toda embriagada.
Para que não andassem por aí a dizer que ébrio era eu, calei-me sobre o assunto, cultivei-o no segredo e intimidade das minhas cogitações. Fiquei a observar, não as tábuas, mas o ror de gente que se ajuntava em seu redor para decifrar qual era aquele santo que um pintor vira a dobrar. Em conformidade com o santo que cada um visse, identificaria o pintor, o momento, os circunstantes, o desígnio que a obra propunha ao sentido da nação.
Uma bebedeira? Não, um pretexto para centos delas.
Tudo o resto é então excrecente. Para quem atingiu o estado de embriaguês que lhe permitiu ver um santo onde estão dois, pode passar ao estado alucinatório de ver um pintor, meia dúzia de reis, uma dúzia de infantes, três ou quatro bispos, um pescador que viu em Peniche, outro em Sesimbra, Sua Excelência o Presidente da Câmara de Lisboa, o Presidente do Conselho de Ministros, o Procurador Geral da República, o arrumador de automóveis do Jardim do Príncipe Real, a nação inteira afinal. Pode mesmo ver-se a si próprio a espreitar por detrás da fila, no plano derradeiro, no bordo superior de uma das tábuas.
Apareceu entretanto uma investigadora dotada de alguma lucidez, suficiente, pelo menos, para clamar que ali não estava um santo, mas dois. Ora, parecendo todavia que era a primeira pessoa que olhava para aquilo em absoluto estado de sobriedade, sem vinho ou qualquer outro medium alucinatório, só tinha reparado que a pintura se estruturava em torno de dois santos e não de um, porque no canto superior esquerdo de um dos painéis centrais identificara outros dois gémios, ou manos, ou génios, da sua própria genealogia. Vai daí, num instante, despenhou-se de novo na alucinação da embriaguês. Os santos eram Crispim e Crispiano, porque a sua presença tinha que atribuir sentido a todos os pressupostos já acumulados, mais a umas novidades que agora trazia à lide.


Os bêbados e o fado. Como um pintor conseguiu compilar o estado de alma de uma nação inteira outrora gloriosa na condição sintética da decrepitude derradeira.


Na obra de um génio, nem tudo revela o mesmo talento. Houve mesmo génios que se imortalizaram com uma só obra, duas ou três, embora por vezes tenham realizado um cento, ou mais.
A maior parte das vezes depende da condição e do contexto em que tiveram que aplicar as suas habilidades. Os génios, antes de o serem, são ou foram homens como nós outros, que capitularam face ao frio e à fome, ao lamuriar da canalha de boca aberta a clamar por paparoca, ao cansaço, ao desalento. É assim a vida.
José Malhoa era quase um escuteiro exemplar. Deve ter pintado um quadro ou feito um rabisco por cada um dos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano que viveu após começar a pincelar, fora os bissextos. Dizem por aí que alguns ainda lhe fizeram e, porventura, vão fazendo o obséquio de pintar uns mais. Geralmente, pintava o que lhe pediam, muitos retratos de gente de condição. Nos tempos mortos pintava de turbilhão o que lhe brotava da mente.
Há duas obras que sintetizam o seu talento e o seu génio.
As suas mais consagradas obras são Os Bêbados e O Fado. Ora aí estão duas referências que já associáramos na apresentação do nosso assunto.
Romarias e procissões, bêbados e fado. Os touros, cavaleiros e reis ficavam para os outros.
E imaginemos então a sala do Museu das Janelas Verdes com o políptico de São Vicente do pintor Nuno Gonçalves ladeado pelas duas telas do Malhoa, de um lado Os Bêbados, do outro O Fado.
E então revelar-se-ia o mistério. Fora aquela nação retratada pelo Malhoa, desalinhada e descomposta, surpreendida porque nem reparara que estava a ser vigiada pelo olhar cirúrgico do pintor, que inventara, entre a bebedeira e o fado, romarias e procissões, aqueloutra, toda alinhada e composta para a fotografia, em redor de um santo ou dois.
E então o fadista do Malhoa foi parar, curado já da cabotinice da sanguínea idade, uns anos mais velho, aos painéis. Plantado mesmo ao lado do santo, um pouco por detrás, de mãos postas e expressão sóbria, com um chapeirão de abas largas.
Ao outro lado do mesmo santo, já também avançada na idade e arrepesa da boémia, bem arrecatada em vestes quase monásticas, foi parar a sua companheira.
Os santos, esses, é que se evadiram do díptico do Malhoa. Ficaram na companhia do pintor e dos pinceis, do lado de cá.