sábado, 30 de janeiro de 2010

Hiato?

Se o Luar perde de vista a Lua, ou o Canto o Peito de que emana, que será isto senão o hiato?

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A Flauta Mágica na savana.

A flauta mágica na savana.




O oficial cubano das forças expedicionárias em Angola, perdido na imensidão dos planaltos da Huila, ordenou ao condutor que parasse o jeep. À retaguarda, toda a coluna estacou.

Desenfiou do pacote um cigarro e acendeu-o. Sentou-se no chão, de pernas traçadas, e ficou estático e à escuta. Só então os circunstantes alcançaram a razão do súbito repouso.

O ar era cruzado por uma voz gutural de ancião, que parecia brotar da terra seca e gretada. O Sol iniciava o derradeiro declínio sobre a linha do horizonte longínquo.

Ali, ninguém reconheceria num cântico, em que se cruzavam longínquas invocações sincopadas, a estrutura clara e luminosa de um trecho da ópera de Mozart, escrito para soprano.

O oficial chamou o seu guia e estugou o passo em direcção a um velho de cujo peito esquálido dimanava a profunda voz. Estava também sentado no chão, encostado a um penedo emergente.

Parou à sua frente e ficou a ouvir. O velho não interrompeu o seu cântico. Dos seus olhos fixos dimanava uma paz profunda, como se no mundo nenhuma tragédia mais pudesse eclodir. Já houveram eclodido todas. O seu mundo estava em paz, a guerra já passara ao seu lado, só restavam cinzas. Ele era uma réstia de cinza.

O oficial pediu ao guia que lhe perguntasse onde aprendera aquele cântico. O velho encolheu os ombros. O que importava?

O oficial insistiu. O velho fixou-o nos olhos, parecia que lhe trespassava o ser. O oficial, temerário, sentiu correr-lhe pela espinha um arrepio.

O velho fez um gesto vago, sem deixar de o fitar, como se dissera: há tanto tempo…

O oficial recalcitrou na interpelação. Sentou-se em frente do ancião como se quisesse comunicar que não sairia dali enquanto não obtivesse resposta.

O velho espraiou então o olhar em itinerário envolvente. Cerca de duas centenas de homens armados e uma dezena de viaturas militares. A sua esfíngica expressão era de interrogação serena. Então isto ainda não acabou?

Melhor seria responder, para que aquela horda prosseguisse o seu caminho e a paz pudesse regressar.

Dirigiu-se ao guia como que invocando uma memória longínqua.

Fora uma rapariga branca que aparecera, não se sabia porquê nem vinda de onde, sentada no tecto de um carro desses, a cantar. Estava só. Toda a gente da aldeia viera ouvi-la. A sua voz parecia vir de tão longe que, durante algumas luas, se altercou na aldeia se era a rapariga ou as águas do rio quem cantava. Concluiu-se, por conveniência, que eram as águas do rio.

Pouco depois chegaram dois homens brancos e levaram a rapariga. A voz permaneceu até ao amanhecer. Só então o rio se silenciou.

O oficial interpelou de novo, por intermédio do seu guia: e porque cantas agora isso?

O velho olhou demoradamente no chão o labor de uma fileira de formigas. Levantou então a cabeça e fixou o olhar no do oficial, serenamente, sem pestanejar: para que tu te vás embora. Reiniciou o cântico.

O oficial levantou-se e mandou ainda perguntar: e se eu ficasse, à espera da rapariga, ou do cântico?

O velho já nem olhou mais o soldado. Suspendendo brevemente o cântico, sussurrou: não volta, já a mataste. Mataste também os meus pais, os meus filhos e os meus netos. Não resta já nada aqui para ti.


Aquele cântico já só pertencia àquele lugar, mesmo que o continuassem a entoar por todo o universo. Não era todavia o mesmo.


Considerações sobre a função e o motivo da narrativa.

Esta breve novela foi-me sugerida por um episódio lírico narrado por uma amiga. Ela é arqueóloga, com profundas incursões pela antropologia cultural, mas o eixo do nosso colóquio centra-se sobretudo na reflexão sobre o género de discurso que mais serve a filosofia e a ciência, para nos furtarmos ao atoleiro do discurso formal.
Aqui fica a breve troca de considerações posteriores à leitura. As considerações da minha amiga vão em itálico.

O oficial cubano é de que tempo?...... A visão de que aquele lugar remoto podia ser profanado por qualquer força militar....chocou-me ao ler.... antes de ir dormir. Mas agora...já não tanto....embora a conversa entre o velho e o oficial cubano no fim me pareça muito explícita.
Quando se deu o meu encontro com a tribo....e esse ponto é crucial....eu cantava...e durante a longa ária de Pamina, chegavam, em silêncio, 2, 8 30, 50 pessoas, aparentemente do nada, que ao nada voltaram, em silêncio, como num sonho....O encontro de mim com os outros...se não tivesse sido presenciado pelo motorista...que devia estar gelado dentro do jeep.... era do domínio do onírico!
Aquilo não se passou....foi um parêntesis ( em latim há uma palavra muito boa aquilo....de que não me recordo ). Ou uma bolha de tempo. A ideia de que alguém que me escutou pudesse mais tarde reproduzir um cântico....não me passaria pela cabeça, precisamente porque aquilo para mim não aconteceu....de facto.

As melhores palavras para designar o teu estado de espírito são gregas, utopia (o que existe fora do espaço) e ucronia (o que decorre fora do tempo). São os dois eixos que estruturam a imaginação. Diria Habermas que estruturam a ideologia no seu estádio constitutivo. Esta citação serve em exclusivo o intuito de dar à coisa uns ares de erudição.

Eu recorro aqui a um episódio real da história de Angola, o do confronto final na Jamba, junto do Rio Cuito, em que participou uma força de elite cubana de cerca de quinze mil homens contra o exército da Unita apoiado por tropas de elite sul-africanas. Mas de facto o episódio assim narrado é ucrónico e utópico, até porque tu não localizaste o teu episódio.
Nunca foi avaliado o impacto destes confrontos na população civil. Mas possuo relatos que testemunham que grande parte da população local nem conseguia identificar quem andava por ali à guerra. Quanto mais porquê.
Nesse sentido, para o velho, a guerra era o contra-ponto utópico e ucrónico da utopia e ucronia do canto.
Por isso, o oficial cubano materializava o agente tanto da morte da sua prole como da rapariga que cantara. Por conveniência metafórica quem cantava era o rio. Porque quando o canto se extinguise a rapariga já se ausentara.
Estás a ver... foi mesmo do Julio de Matos que saí para o mundo.
Mas, para compreenderes isto, terias que ter andado por lá, no meio da guerra. Por isso nunca poderias ser o sujeito da avaliação do efeito do teu canto. Ficas a avaliar o estado de espírito de um sujeito que se cruzou contigo há mais de trinta anos, saído do Júlio de Matos. E o efeito que o relato do teu canto nele causou há uma semana. Danada memória.
Complexos são os itinerários que inesperadamente se cruzam numa singela narrativa.
E, depois disto, ainda me hás de explicar o que é um ritual...
Ora, esta é a segunda história. Afinal não te roubei uma, roubei-te duas.
Síntese: quando conseguirmos fazer redundar toda a filosofia no género metafórico narrativo, teremos resolvido as questões que a filosofia, por si, não resolve. Foi a volta que Freud deu à filosofia e que ninguém conseguiu ainda retomar. Por isso te dizia que Foucault passou à história, para trás de Freud. E de outros. Relê o Borges.
E não me tomes por pretensioso. Estou apenas a iniciar uma contenda. Amorosa...
Tenho a certeza de que vais sair com uma mais iluminada e conclusiva.
Se não fora a tua inspiração, nunca chegara tão longe. És a minha musa, quer queiras, quer não.

Sem dúvida, utopia e ucronia são palavras que se aplicam ao que eu te represento que vivi. Mas deve haver uma palavra que designe “parêntesis”: algo que se intercala, que está no limiar, algo que está ali por pouco tempo...ou que pode desvanecer-se, algo de vibrante e transitório...algo entre. ENTRE. O efeito do que se passou ali naquelas pessoas nunca o conheceria....mesmo que as tivesse seguido e fosse viver com elas.
Há um livro que conta a história duma mulher brasileira- a partir do seu próprio relato muitos anos depois- que foi raptada, quando era uma criança de 8 anos, por uns índios, e que viveu com eles até aos 38 anos, altura em que fugiu. É a história do encontro e desencontro de dois mundos. A branca aprendeu a viver com os índios, casou com dois, teve filhos, falava a sua língua, e, no entanto, nunca se apartou da sua matriz afectiva e cultural de origem. E os índios chamavam-lhe (se não me engano) YAONAMA, “a outra mulher”, integrando-a nas suas vidas com precaução, e sempre, sempre, como “a mulher branca”. É um livro de antropologia, escrito por um italiano, publicado na col. “Terre Humaine”.
Um dia, nos Estados Unidos, num congresso mundial....daqueles a que já não tenho mais pachorra de assistir...estava a jantar com antropólogos de todo o mundo, e um, o mais velho, muito famoso, disse-me: “vivi com os índios do norte do Canadá durante 30 anos. Falava a sua língua, comia e dormia com eles, assistia aos seus rituais mais secretos, conversava com eles, e, no entanto, nunca os compreendi.”
Este fascínio nosso pelo outro, pelo radicalmente outro, este fascínio pela impossibilidade de compreender, que é tão ocidental....este desejo de olhar face-a-face...para, na face do outro, nunca ver mais que o nosso reflexo matizado de nostalgia magoada, este fascínio esteve ali comigo naquele fim de tarde. E a memória desse fascínio ainda hoje me entontece. Algo de forte e erotizado.
Para mim...quando tudo já não tem sentido, tudo está à beira do abismo, só se salva a poesia e a música. Não é a filosofia que me vai salvar. E, sim, claro, Freud abriu uma brecha..que talvez esteja ainda por compreender. Mas não quero contrapôr Foucault a Freud, porque ambos fazem parte dum mesmo sistema de reorganização do mundo...múltiplo e complexo.


A palavra que se adequaria então a esse estado de espírito não se pode dar conclusivamente como latina, verteu tanto no Latim como no Grego, é-lhes pois anterior. Hiato.


Ora, hiato significa um espaço e tempo que se perdeu, pois não se liga com os tópicos que ordenam a sequência de uma narrativa. Histórica por exemplo. Como não liga com o resto, transforma-se em tópico de uma narrativa autónoma e na representação metafórica do que não existiu na sequência do espaço e do tempo. Convergem para o seu sentido, então, utopia e ucronia. O tempo estancou e o espaço migrou para outra dimensão.
Esta matéria é crucial na dissecação do que é, de facto, aquilo que, nas suas ilusões, os antropólogos caracterizavam como observação comparticipada. A ilusão da operacionalidade dessa metodologia desvaneceu-se logo entre os mais astutos, recorendo a vários mecanismos de dissecação.
Ora, para mim, o tópico da dissecação é justamente hiato. Seja, a presença de um observador alógeno no quotidiano de uma comunidade, fechada ou não, constitui sempre um hiato. Mútuo. Seja, tanto na sequência narrativa do alógeno, quanto da comunidade. Passa para o domínio da representação onírica, dando ao termo uma acepção singular. Os hiatos de um e de outro, porque são hiatos, nunca se comunicam.
Foi por isso que a tua história me encantou logo. Sobre os antropólogos estava tudo dito. Mas sobre o hiato que um simples canto faz eclodir há muito mais para dizer. Seja, é na metáfora narrativa que a filosofia encontrará soluções para muita trapalhada.
A minha intervenção em vários episódios em Angola, foram também hiatos, como é óbvio. Foi por ter compreendido que o eram que me vim embora. Não é ocidental o fascínio pelo outro. É ocidental a mania de o integrar num sistema ou paradigma narrativamente sequencial de compreensão do mundo. Do meu ponto de vista, o modelo aplicado à relação com o outro por uma sociedade tradicional é justamente o do hiato. Empiricamente. Seja, para que o inesperado exterior não possa interferir com uma ordem funcional, o ocasional tem que se transferir para o domíinio não simbólico da narrativa estruturante, pertence ao domínio do caos. E sei que estou aqui a recorrer a conceitos transferidos que tenho que substituir, por isso vão em itálico.
E esperemos superar o hiato. Se o superarmos, ainda damos a volta a toda a filosofia, pelo flanco inesperado de um hiato passional.
Somos guerrilheiros filosóficos. E tu a minha musa. Nunca desenvolveria a matéria assim senão para ti. Porque já sabes que me evadi do Júlio de Matos.