segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Para intervir numa «polémica» sobre Saramago.

Não compreendo bem porquê, muitos dos leitores críticos ou laudatórios de Saramago ressalvam, entre as mais notáveis excelências do estilo do mestre, a superação das normas canónicas da escrita, sobretudo no que respeita à estrutura sintática e à pontuação e repartição das enunciações, ou dos enunciados, como o queira entender Vossa Mercê. E entendem que aí reside emboscada a essência da mensagem literária, abrindo ao leitor um vasto domínio de intervenção sobre a escrita, no contexto da leitura.
E não sendo todavia uma novidade, este artefício de Saramago, talvez a ideia esteja bem congeminada.
Foi para repensar esta matéria que resolvi remexer na velha papelada, até encontrar uma sequência de intervenções que meu velho amigo Damião publicava, em fascículos, no jornal O Giraldo, em Évora. Há quase duas décadas.


CARTILHA MATERNAL,



Instrução Breve e Obrigatória,


método seguro para os doudos apenderem a ler e a escrever.


Dedicada ao Professor Doutor M. F. P.



Prólogo Breve, e dedicatória.


SENHOR PROFESSOR,



apresento pois a Vossa Senhoria, para que pondere e julgue, este Método Seguro Para Ensinar Os Doudos A Lerem E A Escreverem. Não quero com ele suprir as faltas daqueles que manda ensinar na magistral instituição a cujos desígnios preside; nem substituir o ilustre magistério de Vossa Senhoria.



Mas se a Vossa Senhoria foi dada a subtil astúcia de saber dar a cada um a sabedoria que lhe convém, eu acho que foi mais habilitado para ensinar os meninos, que têm o ouvido mais maleável para a música e o corpo mais viçoso para a ginástica. E como os doudos chegam aos bancos da escola em idade mais madura, necessário é provê-los de um método mais eficaz, para reger os tis, os travessões, os circunflexos e os hífenes. Sem perderem muito tempo com as metáforas e outros ramalhetes da retórica. Porque é de uma espécie de antropofagodoudagogia que se trata.



E porque para ensinar um perneta a correr é preciso primeiro, pelo menos, provê-lo de uma prótese; no mínimo de uma muleta.



Hoje, como sempre, a Vossa Senhoria dedicado,



DAMIÃO.





Capítulo primeiro; sobre a origem da língua, das palavras e das letras e algumas considerações sobre a doudice; a didáctica aplicada às letras e aos doudos.



A primeira coisa que se deve saber, para se poder escrever e ler como convém, é de onde vêm as letras, as palavras e a língua. E é coisa muito árdua.



Pensar-se-ia então que aos doudos se deve dispensar de exrcício tão violento, como é o de saber se tal vocábulo, tal signo, tal inflexão ou mesmo uma linguagem inteira vem do Latim ou do Grego, do Semítico ou do Camítico, do Rúnico, do Sínico, Nipónico, Índico, ou do Ibérico; ou se é Arábigo.



Mas devo advertir que a doudice é a habilitação conveniente à decifração destes mistérios das ciências filológicas, pois a própria origem da doudice é obscura e penumbrenta; e todo o doudo conhece, da sua paciência clínica, ciências muito afins, como a decifração dos sonhos, a criptografologia e outras artes de descodificação das charadas.



Todo o doudo deve saber então que a língua portuguesa é uma mistura do latim com o grego, o semítico numa proporção discreta de bíblico e de rabínico e o arábigo em partes iguais e equidistantes; que posteriormente ainda se enriqueceu com algumas entoações bantus e interjeições bosquímanes, da Indonésia e da Melanésia.



Mas porque nem todos aceitam esta simetria, é que há tantas variedades no falar; porque uns estão mais afeiçoados ao latim, outros ao semítico, outros ao sortilégio gutural e monossílabo do bosquímane e outros ainda ao tom de rabulice do arábigo. Um puxa para o grego, outro para o cananeu, congresso traz congresso e a língua portuguesa parece uma doudice, sem rei nem roque.



Por isso o que é conveniente, porque reduz o problema, é convir em que todas as línguas derivam do cananeu bíblico, tal qual o falava Moisés, que descende em linha directa do Babilónico antes da diferenciação dos falares.



E há quem diga que a doudice foi criada então, porque houve alguns em quem a fala não se diferenciou e ficaram a falar todas as línguas ao mesmo tempo, uma sílaba em latim e outra em fenício, uma consoante arábiga e uma vogal helénica. E há investigações recentes que comprovam, sem refutação, que existem algumas moedas hispano-romano-púnico-cananeias que denunciam estas astúcias. Um doudo é um monumento filológico.



É por isto que a arte de saber ler e escrever se deve ensinar aos doudos servindo-nos de dois métodos, convém saber: o primeiro é que aos doudos não se deve dizer que há só uma maneira de escrever, mas que há muitas, tantas quantas as diversidades criativas das suas astúcias filológicas. Por exemplo, a palavra portuguesa docência, vem de dois verbos latinos docere e ducere e sei lá de quantos outros gregos e fenícios; por conseguinte pode escrever-se ducência, docência e ainda, por equidade, doucência. Mas poder-se-ia dizer que vem, sem atalhos, do léxico grego doxa, que quer dizer a opinião do vulgo, quase aquilo a que chamamos hoje doudice. E então escrever-se-ia, com toda a legitimidade doxência. Ou estultícia.



E o segundo é que aos doudos não se deve sobrecarregar com muita gramática e o que interessa é que saibam distinguir um sinal de trânsito, ou o emblema de um partido, de uma metáfora do Vieira e do pé de um verso de um vilancete; uma lírica epístola amorosa, de uma petição ou requerimento e todas estas de uma receita de cozinha ou rol de mercearia. Um poema, do boletim de voto para as eleições autárquicas e a insígnia dos sociais democratas da dos comunistas. Porque aí é que a porca torce o rabo.



E que saibam falar por sinais e ler no movimento dos lábios, para poderem coloquear com os moucos, os gagos e os surdos.



E quanto à caligrafia, de que tratarei já no seguinte capítulo, tanto faz que escrevam da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de cima para baixo ou de baixo para cima, conforme à natureza ou ao jeito de cada um; porque contrariar uma inclinação estética é ainda pior do que emendar um feitio físico, um pé torto ou uma corcunda.



Continua no próximo número e segundo capítulo.







Capítulo segundo e trata do estilo no traçar das letras e algarismos, do tamanho das maiúsculas e das minúsculas; e porque razão a este assunto se não deve chamar caligráfico.



Chamava-se antigamente à arte de traçar as letras a caligrafia; e àqueles que as traçavam, calígrafos. E era uma arte muito estimada e ofícios disputados à paulada e bofetões.



Era a arte que primeiro se ensinava aos meninos. Logo que aprendiam a pronunciar mãmã, começavam a rabiscar os mm; quando diziam papá ficavam habilitados a usar três letras, a saber m, p e a. E davam-se umas noções de tis, circunflexos, graves e agudos, assuntos que podiam entrar logo em conjunção com as primeiras cantorias e pifaradas.



E era porque então se investia muito na estética, na harmonia e no aspecto exterior de todas as coisas. Quero dizer que era muito importante para os pais, os avós e os tios, poderem apresentar meninos bem adestrados, com um falar harmónico, uma postura elegante e desempoeirada e capazes de oferecer, a qualquer visita eventual, uma flor com um monumento caligráfico preso por um cordel ou fita de setim. Os meninos e os cachorrinhos de estimação disputavam a primazia na ribalta permanente que eram os serões, os casamentos, os baptizados, os bailes de apresentação das raparigas casadoiras e as consoadas.



De resto, a presença de um doudo, de um ceguinho a incomodar com umas rabecadas, ou a adivinhar o que os circunstantes escondiam nos bolsos, de um menino perneta, ou de um cão tinhoso, era sempre um ritual indeclinável de esconjura, que transmitia a todos a serena sensação do privilégio de uma vida ponderada.



E caligrafia quer dizer isso mesmo, a beleza, a harmonia e os artefícios no exercício do traçar das letras e até dos algarismos; cujos critérios são sempre subjectivos e dependem das inclinações estéticas de cada um. Por isso há uma caligrafia gótica, uma maneirista, uma barroca e até uma abstracta e uma rococó.



A caligrafia é um sinal exterior de distinção. E de exclusão, porque um canhoto, um maneta ou outro estropiado, não podem nunca rabiscar com o desempeno de um menino perfeito, bem nutrido e rubicundo. E há ainda os tremulentos, ou porque são dados a pânicos e ânsias, ou porque sofrem de alguma enfermidade, como seja aquela a que vulgarmente chamam a coreia.



E hoje se pugna por um ensino mais igualitário, que desvaneça as assimetrias mesmo formais entre os cidadãos e confira a cada um os meios de se integrarem até nos círculos mais prosélitos. E já não se vê com bons olhos que um cego, um coxo ou um doudo animem uma romaria, um grupo de beberrões numa taberna, ou um concurso de meninas no Casino do Estoril.



E acresce ainda que essa distinção que se conferia aos meninos mais favorecidos, quer da natureza, quer de seus pais, lhes custava muitas vezes grandes sacrifícios e agonias; eu conheço muitos cavalheiros, hoje muito bem colocados e distintos calígrafos, cujas mãos e alguns tiques são bem a marca de muitas barbaridades, que se cometiam para lhes endireitar a escrita, florear as maiúsculas, corrigir a postura e endireitar as costas, provê-los enfim de gestos largos elegantes e ritmados no escrever, que são sempre sintomas de liberalidade, benevolência e cortesia no pensar e agir.



Pensará o leitor que deriva do que disse que o vocábulo caligrafia se deveria substituir por equigrafia, mormente tendo em atenção aos doudos. Tratar-se-ia de os prover de um meio de se equalizarem a todos os outros cidadãos, inculcando em todos o gosto por uma traça sóbria e uniforme dos caracteres, reduzidos à sua mais pristina forma e feitio.



Bem pelo contrário. E os que assim pensam, ou por não lhes chegar a mais o pensamento, ou por desejarem que assim seja, investem de facto numa ilusão. Porque não há como a uniformidade para exibir as diferenças e pôr cruamente a nu as limitações e o génio de cada um.



O sistema que decorre geometricamente de tudo o que expus é a anarcografia, que quer dizer, mais coisa, menos coisa, a escrita sem mestre. E tenha-se em conta que da escrita sem mestre não decorre apenas que cada um escreve conforme ao seu feitio, mas também conforme à disposição do momento.



É o sistema mais expressivo de escrita e aproxima-se muito da caligrafia abstracta, ou gestual, pelo que não é propriamente uma novidade, mas uma reincidência ou redundância. Só que agora não é mais a estética que, tirana, dita o critério das traças, mas o coração e a gana.



Junte-se a isto que este sistema se intromete ainda com a ortografia, de que tratarei no seguinte capítulo e número e de um relance imagine-se já um gestualismo estrutural, tanto na escrita como nos falares, que é a doutrina sobre que incide todo este método.



Ficam com este sistema os doudos habilitados a escrever como melhor lhes convenha e sem que nada os distinga, com a cor e traça que melhor se ajuste às suas manias, tiques ou crenças, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de baixo para cima ou de cima para baixo, com maiúsculas, com minúsculas ou intercaladas e sortidas, pegadas ou soltas e ainda umas por cima das outras, circuncêntricas ou secantes. E de tal forma que num caracter se possam identificar muitos, por associação ou decomposição, simples ou múltipla, e por aproximação simbólica ou metafórica, de forma a suscitar um grande número de contextos e sentidos e exercitar múltiplas leituras intertextuais.



E como regras, mais propriamente sugestões, deixo apenas estas, que as maiúsculas tenham o dobro do tamanho das minúsculas; e que os p, os q, os d, os b e letras afins desçam ou subam abaixo ou acima de todas as outras dois terços da sua medida. Os algarismos terão sempre o dobro do padrão das letras e barrem-se os zeros para que se distingam, quando convier, dos os.

Continua no próximo capítulo e número.





Capítulo terceiro e trata do que se deve observar no escrever das palavras, arte a que os antigos chamavam ortografia.



Quase tudo o que dissemos no capítulo anterior com respeito à caligrafia, se deve entender para a ortografia que é a escrita conforme às regras, acordos e tratados. E devem-se entender três espécies de tratados, acordos ou pactos; uma é a dos tratados que os gramáticos, mormente os morfologistas e fonologistas fazem entre si e são baseados em conhecimentos e deduções rigorosas quanto à origem e desenvolvimento das palavras e ao seu encanto musical; outra é a dos acordos entre nações ou estados, que deixam sempre abandonados e coléricos os dialectos das minorias étnicas; outra a dos pactos entre os grupos e bandos com alguma unidade social e linguística, corporações, irmandades, partidos e até sindicatos. São estes últimos responsáveis pela maioria das gírias e guetos linguísticos, factores de decomposição e corrupção das línguas e réus de quase todas as espécies de erros.



Acrescem ainda aqueles a que chamamos pactos silenciosos, tácitos e sem expressão escrita, de natureza regional, de freguesia, de concelho, de região autónoma, mas muitas vezes só de um bairro ou quarteirão.



E há ainda uma espécie de incidência do foro do subconsciente colectivo no erro, ocorrências universais de árdua explicação sem recorrer a estudos profundos de sociolinguística, resídios de predisposições tenazes que mergulham nas ténebras das mentalidades colectivas, conjunturais ou de sistema. É o caso que, para exemplo, sem qualquer acordo, tratado ou pacto prévio, todos os alunos e professores das nossas escolas nomeiam o que dantes chamávamos, incorrectamente, frequências ou exames, textes. Ora texte é a palavra francesa que significa texto em português e o que se pretende é dizer teste, do verbo testar que significa avaliar ou verificar; mas o que é curioso e bizarro é que o que em português se diz teste, escreve-se em francês da mesmíssima maneira, test, sem tirar nem pôr.



O que quero concluir é que os erros continuam, na sua maior parte, a constituir normas ou regras colectivas ou individuais impostas pela moda, pela ignorância, ou por reincidência e pertinácia num espírito conservador ou, simplesmente, contraditório e quesilento. Ou por dislexia, que não é sequer uma doudice ou feitio, nem mania, mas um defeito da vista que não identifica os caracteres na sua forma, nem na sua ordem.



Já disse atrás que aos doudos se deve ensinar a escrever as palavras com incidência nos critérios filológicos e etimológicos, que são os mais liberais e menos sujeitos a regras, normas e imposições de significado e sentido. Porque a quantidade quase infindável de étimos de que um vocábulo pode derivar ou descender, gera igual amplitude de explorações de sentidos explícitos, implícitos e mesmo obscuros. É a razão porque actualmente abundam as concepções cabalísticas da língua e subliminares de toda a comunicação, cujos padrões se aproximam satisfatoriamente daquilo que, ainda há alguns anos, se designava como loucura.



Quase poderia dizer que é a conjuntura adequada aos doudos aprenderem a ler e a escrever com sucesso, sendo os intérpetres mais habilitados para executarem por feitio, mania ou outra disposição as reformas que os sábios propõem para as mentalidades estéticas, científicas ou literárias.



O meu conceito de anarcografia serve também para substituir o de ortografia, como referência a uma escrita gestual, neste caso para contemplar um gestualismo etimológico e filológico, que defino como a habilitação para explorar o máximo sentido e significado de cada palavra e grupo de letras em conjunção com uma conjuntura, ocorrência ou estado de espírito; e decidir concomitantemente da forma como a representar em caracteres.



O que fiz até agora, foi apenas laborar na distinção entre erro e anarquia, definindo o primeiro como uma forma errada de submissão a outras normas, regras ou condutas, no caso ditadas pela moda, ignorância colectiva ou individual, alinhamento sociopolítico ou profissional, cretinice reincidente, ou mesmo inveja ou espírito vingativo ainda que subconsciente. Ou por enfermidade oftálmica.



E a segunda como o assumir radical da liberdade de expressão e na comunicação e da não aceitação dos convénios que espartilham a língua e a escrita; nem das formas de distinção e exclusão que o proselitismo social, religioso ou cultural quer fazer incidir sobre todos aqueles que investem ou são obrigados a investir na originalidade e na individualidade; e que bloqueia os potenciais da filologia e da etimologia, como factores de enriquecimento estrutural e contínuo da expressividade das línguas, ou outras formas de comunicação.



O sistema que se usar então para os doudos aprenderem a escrever, seja o da anarquia gráfica ou anarcografia, que tem significado idêntico a etimologia ou filologia sem limites nem contenções de natureza disciplinar ou contratual. Seria o caso para falar de epietimologia.



Mas não se confira excessivo valor ao que já tratei; porque a escrita é apenas uma, entre as múltiplas formas de comunicar e coloquiar. E hoje em dia tornaram-se muito mais profícuas a linguagem verbal, visual e até por transmissão directa de pensamento, sem qualquer medium ou suporte formal ou material. Portanto, no próximo capítulo e número, tratarei da fonética e arte de ler e recitar, da mímica gestual e facial, da linguagem visual com introdução à semântica dos ícones, das escritas hieroglíficas e pictográficas em geral, hipnotismo e transmissão do pensamento, linguagem telefónica e comunicação telegráfica, sistemas lógicos e analógicos, colóquio por satélite e intergalático. Do código de Morse, de bandeirinhas e de um método seguro para aprender a ler nos movimentos dos lábios.



Nota: E não se acabou pelo mesmo motivo de que não se concluíu a História da Vida do Grão Pescador.