segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Vinho (extracto)

Manuel de Castro Nunes


O vinho

Quatro episódios de embriaguez





Discurso prévio acerca do vinho e dos contextos e rituais do seu consumo


No senso comum, inspirado por profundas intrusões atávicas, as consequências do consumo do vinho até ao ultrapassar do limiar da lucidez manifesta-se em reacções antitéticas, bem expressas no juízo popular, este tem bom e aqueloutro mau vinho. Quer dizer que a embriaguez, ou o estado de torpor, exaltação, ou euforia que a antecede, se revela em alguns em manifestações de bonomia, em outros de furor.
Na cultura latina, imbuída de senso comum e espírito trivial, consagrou-se ainda a sentença in vino veritas. Quer dizer que o vinho obriga-nos a manifestar aqueles aspectos do nosso carácter que omitimos sob as roupagens com que nos apresentamos aos outros, ou mesmo, porventura ou por vezes, a nós próprios. Poderíamos até desta trivial sentença deduzir que ninguém se conheceu verdadeiramente sem ter perscrutado o limiar da embriaguez.
É deste sentido que verte o ditado popular, o vinho é que educa, o fado que instrui. E educa nesse exacto sentido, de que nos suscita ou proporciona o conhecimento profundo de nós próprios. Se por fado entendermos a poesia, passaremos a ter matéria que remonta aos mistérios órficos.
O vinho. O universo de alusões que evoca o vinho, numa multiplicidade quase inalcançável de temas, a mitologia, os rituais, a sociabilidade trivial, ou cerimonial, a guerra, a sobrevivência quotidiana.
Anestesia e euforia. Evasão, acutilância, dependência, trevas, distorção.
A dupla, ou múltipla visão, em dois sentidos, o da repetição, em planos diferentes de focagem, do manifestado e o da aptidão para capturar duas, ou mais manifestações de uma única coisa. O embriagado e o louco, com a sua carga de transcendência, o truão, o ridículo, o temerário e o prostrado.
A multiplicidade de significados e de sentidos.
O vinho, com o seu calor, a sua espessura, a sua cor, e o sangue dos imolados, como substituto ou como alusão. Ecce Sanguis Meus. O cálice.
O vinho e o álcool, no sentido alquímico, como o vapor que sobe e que eleva, o medium primordial da transmutação. A água pesada, sublunar e especular que Cristo transmutou em vinho, ou água viva, na boda dos esponsais.
E a embriaguez. Que tem o vinho que ver com a embriaguez?
A embriaguez é apenas um dos estados acidentais que podem advir da relação com o vinho. E, ainda assim, pode, no horizonte maniqueísta que se introduziu nos nossos juízos, ser boa ou má. Um estado de elevação ou um estado de queda.
No que toca ao vinho e à profundidade da sua substância cultural, histórica e sociológica, a embriaguez é um episódio. Ou dois, ou três, ou um minúsculo milhão que nem perturba o infinito.
Em que estado de euforia, em sentido literal ou alegórico, estaria Cristo quando proclamou: - Tomai, este é o meu sangue.?
Como antítese apresentou o pão e disse: - Tomai, esta é a minha carne.
E num instante, na opinião dos hermeneutas e dos teólogos, disse tudo. E pronto.


Como Antão, anacoreta solitário, foi tentado em sonhos e das fantásticas visões que o atormentaram.

Dizem, os hagiógrafos e cronistas, que Antão viveu muito tempo, mais de cem anos, a maior porção deles na solidão do seu abrigo na Tebaida, exposto aos rigores da vida selvagem, ao calor e ao frio, à sede e à fome. O que se diz de um homem que viveu há tanto tempo, solitário ainda por cima, sem ninguém a espiar as suas intimidades, pode suscitar algumas suspeitas. Mas, na verdade, para quem ouve ou lê estas histórias edificantes muito mais interessa o que se disse e diz, do que o homem.
Esse é inacessível, lá ficou sepultado algures, ainda que, de quando em quando, possam ressurgir, como para atestar a verossimilhança do que se vai dizendo, umas relíquias, um fragmento de um osso, um retalho do burel, ou até um pedaço de lama seca que guarda a impressão do rasto de uma sandália. E perante estes atestados materiais tudo o resto deles sorve a condição do verosímil.
Mas para lá do que se disse e escreveu, ainda houve quem representasse, pela imagem, a intimidade dos seus visionários e solitários arrebates. E aí, onde a imagem intervem nas formas de dizer, nem vale a pena contestar.
Ora é o caso de um pintor holandês, que por acaso, ou não, se chamou, ou lhe chamaram, Jerónimo e que viveu porventura menos de metade da vida de Antão, mas teve tempo ainda para lhe compilar os sonhos, visões e, na opinião de alguns até, algumas perversões da alma.
E, como o anacoreta vivia retirado em solidão nas profundezas do deserto, é bem mais provável que tenha sido o pintor quem bebia um copito a mais. Porque até então o que se sabia, transmitido pelo seu breve companheiro Atanásio, era que o pobre monge fora sucessivamente assediado por inauditas tentações dos demónios. Com o Sol a torrar-lhe os miolos, no êxtase das febres, bem poderia ter mergulhado nuns mirabolantes delírios, porventura tenebrentos, num estado semelhante ao da embriaguês, mas sem vinho.
Ora, se da natureza explícita das alucinações do eremita nada sabemos senão o que Atanásio relata, os efeitos da bebida na alucinada imaginação do mestre ficaram visualmente bem documentados e veneram-se ainda hoje como relíquias de outra espécie, em Lisboa, em Madrid e em muitos outros lugares. Ambíguas, porque tanto podem ser tidas como relíquias do santo, como do pintor.

Bem, até aqui, temos uma história trivial de um pintor com pendor para a bebida, que, no domínio do senso comum, se constituíu na hipótese mais coerente para sustentar o inesperado na obra de muitos génios, e que para suavizar as reacções dos circunstantes à sua cosmogenia ébria e inebriante a atribuiu a um santo, erradicando-a do horizonte do pecado ou transgressão, senão em espécie, em género pelo menos. Até porque o santo, assediado todavia por toda aquela cáfila de mafarricos, foi capaz de lhes opor a tenacidade das suas pias convicções. Não foi o caso do pintor, que, durante a sua breve vida, não foi capaz de se libertar das trevas com que a bebida lhe turvava um são alcance da vista sobre as coisas simples. Sempre que pegava no pincel, saiam-lhe para as tábuas os turbilhões de seres inimagináveis com que o abominável atormentara o pobre anacoreta.
Mas o que pouca gente sabe é que o pintor era cego. Em verdade, ébrios eram os pinceis.
Prova do que proponho é que, passados pouco mais de dez anos, andavam já nas mãos de outro mestre, um tal Pedro, sujeitando de novo os seus gestos e movimentos e a sua mente não menos perturbada às alucinações da embriaguez. Tal como as sandálias ou o burel do santo anacoreta, os pinceis alcançam limites de sobrevivência terrenal muito mais amplos do que os da vida humana. Tornam-se relíquias.
Atribui-se a Jesus a parábola que alerta os homens para o facto de que um cego, ou dois, ou uma fila deles guiados por outro cego se precipitarão no primeiro abismo que os surpreender na carreira.
Imaginem só uma academia inteira de pintores ébrios, trespassando mesmo várias gerações, guiados pelos mesmos pinceis. Que foram, por sua vez, buscar inspiração às alucinações de um anacoreta solitário atormentado pelo demo e que se evadira dos terrenais ermos havia mais de mil anos.

Bem, mas esta história não pretende na verdade versar o tema da embriaguez dos pinceis, nem dos pintores. Foi justamente o alumbramento dos santos o que nos interessou. Mais propriamente de Antão. O alumbramento é da mesma natureza da embriaguez, embora não seja da mesma substância, porque da embriaguez dos alumbrados estava ausente o vinho. Pelo menos o vinho em sentido restrito.
Devo ressalvar todavia que alguns altercaram com argumentos consistentes e continuam a altercar que na origem do alumbramento dos santos, se não estivera o vinho, reconheciam-se sintomas de consumo, intencional ou não, de substâncias que hoje designamos alucinogéneas.
Não é este contudo, nem ainda, o assunto que nos interessa e que congemina este episódio.
O que nos interessa é saber como o alumbramento dos santos se comunicou e ofereceu os tópicos ao êxtase dos ébrios, sejam os pinceis, sejam os pintores. Ou, vice versa, o êxtase dos santos contaminou o alumbramento dos ébrios. Qual a correspondência entre a alusão, ou ilusão, que os pintores nos legaram através da imagem e as alusões que os santos, ou os seus cronistas e intérpretes legaram aos pintores através do verbo.
A ambiguidade desta relação só pode ser expressa se no episódio fizermos intervir o observador. O observador da pintura, claro, porque aos pinceis e aos pintores já se perdeu o rasto, muito mais ao santo. Resta-nos então imaginar um observador surpreendido pelo arrebate em que o despenhou o confronto com a imagem e que tem que afogar a angústia num copito, dois ou três, ou num almude de vinho.
E então passaria de novo da embriaguês dos pinceis ou dos pintores para o alumbramento do anacoreta. Se participasse da habilidade para se passear sobre a tela ou o painel espraiando as tintas, aonde iria a coisa parar?
Mas como nem tem a habilidade dos pintores, nem desvendaria jamais o paradeiro dos pinceis, ficará prisioneiro do estado de alumbramento do anacoreta, enriquecido pelas referências sensoriais das imagens que os pinceis, movidos pelas mãos dos pintores, depositaram nas tábuas. A embriaguês aglutinou-se com o próprio alumbramento, porque se tornou no seu motivo.
Já não temos um anacoreta alucinado nem um pintor ébrio, ou uma academia de pintores cegos guiados por uns pinceis embriagados, mas um observador alucinado, não pelas suas próprias fantásticas miragens, mas pelos arrebates do anacoreta interpretados pela bebedeira dos pintores ou dos pinceis.

Mas falta-nos ainda um golpe de asa para atingirmos a derradeira ambiguidade desta relação. E o caso é que o observador mal vê o santo, perdido ou quase ausente na barafunda daquele caos. Está cego já também. Quando olha, de relance, o que vê é a alucinação, seja ela fruto das mortificações místicas do eremita ou da embriagues do pintor. Até atingir a percepção do santo, tem que examinar com todo o detalhe cada um dos mafarricos. Quando o enxerga, o santo é já quase uma excrecência. E nem se pode garantir que aquele homem prostrado e indiferente seja o santo, ou se é uma ilusão ou manifestação de qualquer dos outros mafarricos, a soberba em si própria, e o santo nem lá está, ficou de fora a observar as suas alucinações.
E então o santo é simultaneamente Antão, o pintor e o observador, todos e cada um ausentes do barulho.

Mas uma coisa é certa. Alguém viu ou imaginou aquele caos e cada um dos seus pormenores, a relação entre eles e a sua coesão. A tendência de um erudito é a de recuar, em marcha à rectaguarda, até à fonte de onde brotou a inspiração iconográfica, aquele diabo remonta a um velho manuscrito apocalíptico iluminado do Século XII, aquela exótica flor ornamentava um livro de horas do Século XIV, aquele episódio grotesco foi retomado de uma lenda ou de um conto popular, por aí adiante, até dissecar e analisar todo o universo representado, decomposto nas suas partes, cada uma acompanhada da sua própria hermenêutica.
E então deixamos de ter uma pintura e uma representação, temos duas centenas intrometidas umas com as outras de cambulhada, sem compreendermos sequer o sentido da sua associação. Deixamos de ter uma bebedeira mas cem, cada uma com o seu episódio e o seu tópico, que o pintor reuniu na bebedeira derradeira, cujo pretexto foi o santo. E teremos ainda as bebedeiras que a pintura suscitar nos observadores.
Nem o quadro é já uma relíquia, é um pretexto. E não será isso afinal uma relíquia, um pretexto?
E não será isso afinal a embriaguês, um pretexto? E não será isso afinal o êxtase do anacoreta místico, um pretexto?
Ora, aí está um mistério sem solução.
Como dizia, ébrios eram os pinceis.

Ora, foram ainda estes pinceis, embriagados, que, vindos ninguém sabe de onde, mas já na mão de Jerónimo, congeminaram a ideia de representar a ceia eucarística sobreposta, como um palimpsesto, às bodas de Caná. Talvez a blasfema ideia remonte às tentações do santo. É certo que dizem que remontava muito para trás do pintor.
Mas assim, com a expressão imediata, todavia astuta, de Jerónimo, ninguém até então se atrevera a associar a eucaristia à transmutação da água e às bodas místicas de Jesus.
Como os pinceis eram ébrios e o pintor entornava uns canjirões de vinho, ninguém se espantou porque o Mestre aparecia duplicado na mesma cena e episódio, como o taumaturgo que opera o milagre e abençoa a cerimónia e como o nubente. Tratava-se apenas do mais imediato dos sintomas visíveis da embriaguês, a duplicação da imagem.
Este singelo tema mereceria, por si só, se se tratara de alguém que nada mais tivesse que fazer, um tratado com uns centos de páginas. Mas eu tenho pouco tempo já para realizar umas tantas coisas que me impus até me ir embora, tenho que sintetizar o assunto com duas ou três pinceladas.
A primeira é que, sobre a mesa dos convivas, só se apresenta pão e vinho, este sugerido pelos copos, mais do que pelo líquido, ou pelo espírito, que é invisível. Por detrás da cerimónia desenvolve-se o tema da gula, das iguarias e de outras terrenais infernidades, como se o espaço se apresentasse ao pintor, ou aos pinceis, em duas dimensões, graficamente contíguas, mas semanticamente incomunicáveis.
Para aludir explicitamente à eucaristia, o pintor ainda colocou sobre a mesa uma patena e, no centro da celebração, diante da noiva e de costas, uma misteriosa criança, coroada aparentemente de ramos de oliveira e envergando as vestes de diácono, ergue a píxide, como o sacerdote no instante ritual da elevação.
Quase em primeiro plano, uma cortesã, que se antecipou, de olhos semicerrados como se ausente do episódio, bebe já de uma taça. Eu quase juraria que se trata da mesma cortesã que noutra obra prima do pintor, representando o transporte da cruz, reaparece, no papel de Verónica, no canto inferior esquerdo, de olhos cerrados e alheia ao drama, como se tivera sido surpresa no seu caminho pela passagem do macabro cortejo, em direcção inversa. É no lenço que exibe, em primeiro plano, com o rosto de Jesus impresso, que se alude neste caso à duplicação da imagem.
Na sua indiferença ou soberba, é quase como o anacoreta plantado no episódio das suas alucinações. Foi ela quem inventou, ou viu aquilo tudo. Fica o pintor perdoado. Os pinceis também.
Pondo a matéria em ordem, é de novo um pretexto. Uma advertência ao observador, como se nos dissesse: ébrio és tu.


Como uma nação inteira se embriagou ao contemplar umas tábuas pintadas, achadas ao acaso, de que ninguém sabe a proveniência, ao ver nelas aparecer duplicada a imagem de um santo.

E como ninguém queria acreditar que o pintor era ébrio, compuseram então com as seis tábuas de carvalho que serviam de mesa nos andaimes da obra do antigo Palácio Patriarcal em São Vicente de Fora, dois trípticos. Tiveram que dar uns pontapés nos cânones da perspectiva, mas, com as seis tábuas recuperadas dos escombros, duas mais largas e quatro mais estreitas, conseguiram distorcer a composição, um santo para um lado, outro para o outro. Como assim recomposto o conjunto formava dois trípticos, ficara ainda fora de equação a bebedeira.
Altercava-se tão só acerca de onde poderiam provir aquelas tábuas assim tão bem pintadas e compostas, quem as pintara, que complexo cerimonial estava representado em cada conjunto de três, em que intervinha todavia o mesmo santo, ricamente paramentado. Não parecia estranho a ninguém que o mesmo santo aparecesse representado repetidamente, paramentado com as mesmas vestes, ou similares, em dois trípticos autónomos, em duas cerimónias porventura contíguas, envolvendo todavia outros circunstantes.
Passou-se a disputar sobre quem as vira primeiro naquele degradante preparo, se um pintor que passava por acaso alertado por um mestre de talha, se um arcebispo diligente que as mandara recolher com mais uns trastes num corredor, sem lhes prestar todavia grande atenção.
Foram necessários quase dez anos para que um estudioso, mais astuto, ficasse pregado no chão a olhar surpreendido, porque ali estava a nação inteira, reconhecendo, de imediato, um dos ínclitos infantes. Mais dez anos, aparecia um novo erudito capaz de identificar o pintor e com poder e estatuto para as disputar para o património público.
A bebedeira nacional ficou por então circunscrita ao reconhecimento documentado de que havia uma águia lusa na pintura primitiva do Século XV, que conseguira, para mais, surpreender o próprio espírito da nação, toda arrumadinha e em pose, a olhar para o passarinho. Que embevecimento!
Fosse quem fosse que as vira primeiro e as salvara de darem alento ao lume, na fogueira que os operários acendiam de manhã para aquecer as mãos e assar os chouriços, quem lhes alcançara o sentido fora aquele cavalheiro. Por isso, o seu nome e alguns arrebates que lhe tomaram logo de assalto a mente, nunca mais se descolaram das tábuas. Nem o nome do santo, nem o nome do pintor que lhes propôs para autor.
E assim passaram à história atravessando gerações de polémicas, altercações e bofetões. Os Painéis de São Vicente, do pintor Nuno Gonçalves.

Entretanto, trinta anos ainda depois, apareceu mais um pintor, poeta e tudo, que se abeirou das tábuas e disse, porventura só para incomodar e por impertinência, todavia com razão, que eram todos tolos, sabiam muito acerca de muita coisa, liam muitos livros e consultavam muitas crónicas e tombos, mas eram incapazes de realizar percepções imediatas de geometria e perspectiva. Tinham trocado tudo. Aquilo não eram dois trípticos, era uma única composição representando uma única cerimónia e momento, no mesmo espaço, e o santo, fosse ele qual fosse, estava duplicado. A nação inteira estava ali, no mesmo momento e espaço, não fora talhada ao meio, metade para um lado, outra para outro, mas convergia toda para o centro, em cujo eixo, uns metros mais atrás, onde estávamos agora nós a observar, teria estado pintor a pintar e o mestre da cerimônia a distribuir os lugares segundo o protocolo e condição de cada um.

Também há cerca de trinta anos, o assunto dos Painéis de São Vicente pouco me interessava. Que lá estivesse o São Vicente, o ínclito Infante, um rei qualquer que fosse, uma rainha, ou um anónimo pescador da faina do Tejo ou do Oceano, o que interessava isso ao futuro de uma nação tão pobre e conturbada, que invocava um glorioso passado para mitigar a míngua do presente, do futuro porventura? Um bom copito de vinho tinto era do que todos precisávamos.
E naquela tarde calhou-me ter que fazer companhia a um sobrinho, um petiz de cinco anos com olhos estáticos cor de mar, mas astuto e perspicaz. Havia pouco para fazer e não faz qualquer mal a uma criança perder umas horas num museu, sobretudo numa tarde de canícula. Deve ser um aborrecimento para ela, mas sempre nos alivia a nós. Ora, o que estava mais à mão era o Museu das Janelas Verdes.
Parei em frente da composição e pensei que, se aquilo era português, então eu não era.

- Oh, tio. Dois meninos gémios!

- Gémios?

- Pois. Não vês? Aqueles meninos são gémios...

- Não, são um santo.

- Um?...

O rapaz olhou para o tecto com uma expressão complacente e deixou escapar uma gargalhadinha irritante.

- Tens muita gracinha...

- Ó tio, o meu pai conta uma anedota muita engraçada acerca dos bêbados que vêem as coisas a dobrar. Parece que há bêbados que vêem uma coisa só aonde estão duas. Ali estão dois meninos gémios, dois meninos gémios, tio. Iguaizinhos. Podem ser santos, mas são dois e gémios.
Se o tio tem razão e é só um santo, então era o pintor quem estava bêbado. Eu não. Sou muito pequenino.

Ora, como o que mais me satisfaz o paladar é um, ou dois, ou três copos de bom vinho e ainda sou dado, de quando em quando, a uns arrebates místcos, um assunto que sempre me interessou foi o da ilusão e da sua hermenêutica, tanto quanto o da sua terapia. Foi este episódio que me suscitou o interesse consequente e quase cirúrgico pelos Painéis de São Vicente e por um certo pintor a que chamaram Nuno Gonçalves.
Bem, a mim não me interessava muito a identificação do santo. Esse problema ficara resolvido pelo rapaz, com o critério da sua ingénua e imediata hermenêutica. Só havia que complementá-la com os conhecimentos relativamente exaustivos que eu adquirira já nos territórios pios da hagiografia, pois passei muito tempo em companhia de padres, altercando sempre, todavia, com eles, sobre questões de fé e de razão. Na verdade, qualquer catequista de aldeia sabe que só existem dois santos gémios na hagiografia tradicional, os meninos Cosme e Damião, mártires e diáconos, associados sempre ao patrocínio da medicina, da cirurgia e, por vezes, de outras bruxarias terapêuticas, ou seja, em síntese, a cura.
Bem, a mim não me interessava também muito a identificação do pintor. Que fosse então Nuno Gonçalves. Não me interessava a identificação dos infantes, dos reis, das rainhas, dos prelados, nem tão pouco o sentido da cerimónia representada.
O que me interessava era o que os outros viam e porquê. E como é que podiam ver tudo, menos o que era imediato. E a primeira coisa que não viam era que ali não estava um santo, estavam dois e eram gémios. Se assim não fora, ou o pintor era ébrio ou andava a nação toda embriagada.
Para que não andassem por aí a dizer que ébrio era eu, calei-me sobre o assunto, cultivei-o no segredo e intimidade das minhas cogitações. Fiquei a observar, não as tábuas, mas o ror de gente que se ajuntava em seu redor para decifrar qual era aquele santo que um pintor vira a dobrar. Em conformidade com o santo que cada um visse, identificaria o pintor, o momento, os circunstantes, o desígnio que a obra propunha ao sentido da nação.
Uma bebedeira? Não, um pretexto para centos delas.
Tudo o resto é então excrecente. Para quem atingiu o estado de embriaguês que lhe permitiu ver um santo onde estão dois, pode passar ao estado alucinatório de ver um pintor, meia dúzia de reis, uma dúzia de infantes, três ou quatro bispos, um pescador que viu em Peniche, outro em Sesimbra, Sua Excelência o Presidente da Câmara de Lisboa, o Presidente do Conselho de Ministros, o Procurador Geral da República, o arrumador de automóveis do Jardim do Príncipe Real, a nação inteira afinal. Pode mesmo ver-se a si próprio a espreitar por detrás da fila, no plano derradeiro, no bordo superior de uma das tábuas.
Apareceu entretanto uma investigadora dotada de alguma lucidez, suficiente, pelo menos, para clamar que ali não estava um santo, mas dois. Ora, parecendo todavia que era a primeira pessoa que olhava para aquilo em absoluto estado de sobriedade, sem vinho ou qualquer outro medium alucinatório, só tinha reparado que a pintura se estruturava em torno de dois santos e não de um, porque no canto superior esquerdo de um dos painéis centrais identificara outros dois gémios, ou manos, ou génios, da sua própria genealogia. Vai daí, num instante, despenhou-se de novo na alucinação da embriaguês. Os santos eram Crispim e Crispiano, porque a sua presença tinha que atribuir sentido a todos os pressupostos já acumulados, mais a umas novidades que agora trazia à lide.


Os bêbados e o fado. Como um pintor conseguiu compilar o estado de alma de uma nação inteira outrora gloriosa na condição sintética da decrepitude derradeira.


Na obra de um génio, nem tudo revela o mesmo talento. Houve mesmo génios que se imortalizaram com uma só obra, duas ou três, embora por vezes tenham realizado um cento, ou mais.
A maior parte das vezes depende da condição e do contexto em que tiveram que aplicar as suas habilidades. Os génios, antes de o serem, são ou foram homens como nós outros, que capitularam face ao frio e à fome, ao lamuriar da canalha de boca aberta a clamar por paparoca, ao cansaço, ao desalento. É assim a vida.
José Malhoa era quase um escuteiro exemplar. Deve ter pintado um quadro ou feito um rabisco por cada um dos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano que viveu após começar a pincelar, fora os bissextos. Dizem por aí que alguns ainda lhe fizeram e, porventura, vão fazendo o obséquio de pintar uns mais. Geralmente, pintava o que lhe pediam, muitos retratos de gente de condição. Nos tempos mortos pintava de turbilhão o que lhe brotava da mente.
Há duas obras que sintetizam o seu talento e o seu génio.
As suas mais consagradas obras são Os Bêbados e O Fado. Ora aí estão duas referências que já associáramos na apresentação do nosso assunto.
Romarias e procissões, bêbados e fado. Os touros, cavaleiros e reis ficavam para os outros.
E imaginemos então a sala do Museu das Janelas Verdes com o políptico de São Vicente do pintor Nuno Gonçalves ladeado pelas duas telas do Malhoa, de um lado Os Bêbados, do outro O Fado.
E então revelar-se-ia o mistério. Fora aquela nação retratada pelo Malhoa, desalinhada e descomposta, surpreendida porque nem reparara que estava a ser vigiada pelo olhar cirúrgico do pintor, que inventara, entre a bebedeira e o fado, romarias e procissões, aqueloutra, toda alinhada e composta para a fotografia, em redor de um santo ou dois.
E então o fadista do Malhoa foi parar, curado já da cabotinice da sanguínea idade, uns anos mais velho, aos painéis. Plantado mesmo ao lado do santo, um pouco por detrás, de mãos postas e expressão sóbria, com um chapeirão de abas largas.
Ao outro lado do mesmo santo, já também avançada na idade e arrepesa da boémia, bem arrecatada em vestes quase monásticas, foi parar a sua companheira.
Os santos, esses, é que se evadiram do díptico do Malhoa. Ficaram na companhia do pintor e dos pinceis, do lado de cá.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Umas rimas do Damião



E andas tu nesta lida,
a tentar permanecer,
e ainda nem entendeste.

Não há sentido na vida,
senão que tu já morreste
antes mesmo de nascer.



Razão é um pau direito,
com os anos se mortefica.
Bem usada e a preceito,
com o tempo torta fica.

Nem há sequer um preceito
que a razão certifica.
Só tens que pô-la ao teu jeito,
logo ela te qualifica.

Ter razão não é segredo,
nem tem nada que saber,
nasce breve e morre cedo.

Ela é aquilo que eu disser,
enquanto durar o medo
de alguém a contradizer.


sexta-feira, 18 de julho de 2008

Elmano d'Argus
extractos de Palimpsesto, no prelo.

Desfolhada



E com todas estas voltas e arquivoltas ia bem adiantado o Outono, os caminhos atapetados de folhas secas varridas pelas ventanias, os dias já curtos, nos tonéis o vinho novo a fermentar, todos, homens e bichos, a atulharem as tocas para os dias em que não se pode sair fora.
E chegado Cosme pela tarde, com os últimos estertores do Sol já pálido a balbuciar na linha do horizonte, os rebanhos a recolherem aos redis, os primeiros lobos a uivarem ao longe nas serranias, os transeuntes cosidos com as paredes nas vielas, recebeu-o Miguel no átrio térreo da casa, com ar de caso.

- Está cá aboletado, há dois dias, o Senhor Frade.

- E então?

- Então, Senhor, vem com ar muito abatido. Se não se tratasse do Senhor Frade, com o seu rosto de lua cheia irradiante de pálidas quietudes, diria que vem apavorado.

- Deixa-te de paráfrases, raio, que quer o frade?

- Espera-vos, claro. Parece, de resto, vir só de fugida, com o demo na peugada.

- Já veremos o que traz o frade. E minha mulher?

- Está no salão, recolhida, com ordem de ninguém entrar, a examinar uns papéis.

Cosme subiu e bateu com força na pesada porta do salão, repetidas vezes, até que Raquel abriu. Vinha com o semblante crispado, profundamente abatida e perturbada. Quando encarou Cosme o rosto desanuviou, mas logo lhe romperam os mananciais dos olhos em lágrimas, lançando-se em desesperado abraço.
Cosme limpou-lhe o rosto, compondo-lhe os cabelos. Ela afastou-se e interpelou em mímica sobre o que pretendia o frade. Cosme encolheu os ombros, não sabia ainda, logo se veria.
Raquel entrou então, apontou o tampo do bufete coberto de papelada em desalinho, comunicando que aquela tralha trouxera-a o frade. Cosme não prestou muita atenção, pegou na pena, mergulhou-a no tinteiro e, no verso de uma folha ao acaso escreveu: Sei que tens ainda algo para me comunicar sobre tudo isto, que me tens sonegado, por amor, tenho a certeza.
Raquel respondeu, após longa reflexão e depois de rasurar sucessivamente vários rabiscos, tentando encontrar a melhor forma de comunicar algo, ou decidir se o faria.
Vou trair compromissos que tinha para comigo própria, pois jurara que jamais intrometeria entre nós este assunto, deverias ser tu a desvendar este mistério. Tu reconheceste como minha a caligrafia da nota aposta à margem da quarta página da Relaçam d’O Amolador.
Ora, meu amor, eu, como qualquer um, de resto, reconheceu logo a tua no texto integral do manuscrito. Tudo o que se tem passado desde há cerca de dois anos, tem como móbil a interpretação deste mistério.
Cosme teve de imediato uma reacção de cólera incontrolada, quase pueril. Depois recuperou a serenidade.
Ora essa, a Relaçam tem quase vinte anos, se já tinha irrompido no mundo, como todavia a escreveria?
Raquel estava decidida a concluir aquele assunto.
Não. A Relaçam de que falamos não tem vinte anos, o episódio relatado, porventura com alguns acrescentos, ou deformações, terá vinte ou mais anos. Teria corrido na altura uma Relaçam d’O Amolador, que ninguém conhece ou de que ninguém se lembra, pois O Amolador há mais de uma década que não faz sair as suas novidades, dedicou-se a outras coisas, que vão saindo impressas por aí.
Devias agora falar com o frade.
Raquel aguardou expectante que Cosme terminasse a leitura, depois retirou-se apontando o bufete, como se dissesse, lê.
O jovem permaneceu encarcerado no salão durante toda a noite, ora dormitando no cadeirão, ora reflectindo, ora examinando a papelada que o frade trouxera.
Tratava-se de resmas e resmas de pequenas brochuras, percorrendo todos os gêneros da literatura proscrita, que circulava sem licenças nem referências de sede de edição ou impressão, ou com referências fictícias.
Tudo indiciava que todo o conjunto irradiava de duas fontes, em sucessivo e alternado itinerário de respostas e contra-respostas, agora ataco-te com uma farsa, tu contra-atacas com uma novela, eu com um tratado, tu com uma ode, um libelo, um folheto, uma sátira, uma relação, tudo estruturado pelos tópicos da condição das ciências e suas novidades, mormente da medicina, das artes da adivinhação e do esconjuro, quiromancias, astrologias. De um lado pelejava O Amolador, do outro O Trocas. Em duas ou três peças O Amolador insinuava chocarreiramente que O Trocas era anagrama de Simão de Castro, que nem existia, pois há muito se enforcara e o seu cadáver fora rigorosamente dissecado no teatro anatômico por um mestre de Coimbra, ao que ele assistira como seu ajudante.
A peça todavia mais paradoxal era uma das mais recentes estocadas d’O Amolador, com a forma displicente de um libelo contestando os métodos e os procedimentos, em que atribuía a O Trocas a vivissecação do próprio filho, com o propósito de o devolver renovado e aperfeiçoado à vida. Tanto a descrição da operação como a contestação dos procedimentos emanavam um realismo de arrepiar os cabelos. Parecia não ter mais do que dois anos.
Mas, logo de seguida, O Amolador saíra à liça, a contestar a autoria.
Cosme saiu do salão com o romper do dia e os primeiros buliços de gente pela casa e pediu a Miguel que chamasse então o frade.
Frei Boaventura apresentou-se com um aspecto mais abatido ainda do que Cosme esperava. Parecia mesmo que passara a noite em vigília, com os olhos mergulhados nas órbitas maceradas.

- Nunca esperei que vos recolhêsseis aqui em Salamanca, Senhor Frade. Pelos vistos, lá por Lisboa faltou-vos subitamente ocupação.

- Nem mais, Senhor. Vosso tio tomou progressivamente o encargo de tudo, sonegou-me tudo, passei a ser seu confessor e digo-lhe as missas pela manhã.

- O Senhor José de Castro não é meu tio, bem o sabeis. E que vos confessa José de Castro?

- Bem... em verdade não se confessa, parece mais querer confessar-me a mim, ou a vós e a um tal Amolador através de mim. Digamos que me interroga. Com veementes ameaças, por vezes. Chego a imaginar-me estendido numa laje, dissecado com o coração para um lado e os bofes para o outro.

- Dissecado?

O frade ficou por instantes irrequieto, olhando ora para um lado, ora para o outro, sem se fixar em nada.

- Não sabíeis que José de Castro foi, antes de tudo o que se tornou na vida e de começar a calcorrear os caminhos, o discípulo dilecto de Dom Francisco Canete, cirurgião no hospital da universidade?

Cosme ficou ainda uns instantes boquiaberto. Depois dirigiu-se ao frade peremptoriamente, como quem não admite mais rodeios.

- Vá, Senhor Frade, desembuche de uma vez por todas, deixe-se de volteios, conte o que tem para contar, que me começa a faltar a paciência.

O frade reflectiu um pouco e, quando respondeu parecia que recobrara o ânimo, com a intenção de ser breve e conciso.

- José de Castro não é de facto vosso tio, pode muito bem ser vosso pai, isso nunca o saberemos.
Lestes a papelada que vos trouxe. Ora isso foi o que se passou durante muitos anos, uma disputa permanente entre duas confrarias, que teve como protagonistas José de Castro de um lado e O Amolador do outro, sobre um tema qualquer que poucos conseguiram interpretar, mas que tinha a ver com o tema da dissecação, da medicina, do conhecimento, das ciências genericamente e das artes, com o seu móbil e o seu préstimo, com o que se deve e não deve conhecer e como. Tudo corria alegoricamente de forma insinuante, sem ninguém se revelar.
Afonso de Torres mascarou durante muito tempo a intervenção de José de Castro, mas num dado momento passou-se para O Amolador. José de Castro tomou conta da oficina de Afonso de Torres, mas Afonso de Torres tinha em Évora um cunhado, com muitas ligações por aí fora, onde ficou sediada a intervenção d’O Amolador.
Eu, que tinha uma velha dívida de honra para com Afonso de Torres, fiquei com ele, como seu guia e seu guarda. Muito útil lhe foi, para fazer circular os negócios pelos caminhos, a mobilidade dos meus irmãos de São Francisco.
Ora, sobre o âmago da questão não vos posso mais adiantar. Assisti, diligente, à disputa entre duas confrarias sem lhe enxergar o sentido. Vós, penso, estais mais apto para o decifrar.
Isso foi o que se passou até há dois anos. Depois O Amolador desatou a insinuar que O Trocas passara a fazer sair como de sua autoria, d’O Amolador, coisas absurdas e desgarradas que confundiam tudo. A nova matéria iniciou-se com uma Relaçam da dissecação de um enforcado, sobre que O Amolador já tinha discorrido vinte anos antes, mas vinha de novo à liça com alterações. José de Castro ficou perturbadíssimo, num buliço inquieto pelos caminhos, a conjurar. Planeou então que substituiríeis Afonso de Torres com brevidade.
A partir de então, Senhor, só vós sabeis porque não o conseguiu.

- Eu?

- Pois, vós. É o que mais perturba José de Castro. Ele também não sabe.

- Ora, Senhor Frade, porque porventura eu sou O Amolador. Ficareis por cá. Deixaremos a oficina de Lisboa a José de Castro, para que possa continuar a altercar com O Amolador.

Cosme parecia dar assim por concluído o negócio, com um sorriso insinuante no rosto, como se não levasse a coisa a sério. Mas o frade tinha ainda uma surpreendente novidade.

- Devo comunicar-vos ainda uma novidade. Alguém exumou o cadáver de Afonso de Torres, que foi dissecado e embalsamado, para depois o pendurarem pelo pescoço de um barrote na sua oficina. Uma obra macabra. Garanto-vos que muito poucos, só quase eu e vós, sabíamos sob que laje jazia, na nave da Igreja do Mosteiro.

- E que pretenderia, quem quer que fosse, com tal desaforo?

- Bem... é óbvio, Senhor. Tão só comunicar que renasce Simão de Castro. Resta saber, desta vez, de quem será pai o enforcado.

Cosme apartou-se de tudo e de todos durante uma semana, escreveu muito, rasgou arráteis de laudas e rascunhos, só saía para engolir na cozinha fugazes refeições, ou para ficar, por breves mas intensos momentos junto de Raquel, mudos, de olhos fixos um no outro, sondando as profundidades das almas.
Depois, um dia pela manhã, saiu com novo ânimo estampado no rosto e procurou Raquel. Levava já escrito o prólogo do mudo diálogo.
Eu sou O Amolador, agora e não sei desde quando. O Amolador sai de Évora, passa a ficar aqui aboletado, nos intervalos das suas itinerâncias, e daqui sairá tudo o que tiver que sair com o seu nome, embora conte com mais alguns sítios para se ir imprimindo, mormente a casa de meu tio em Évora. Tu, juntamente com o frade, edificarás a rede dos itinerantes agentes para pôr tudo a circular. Salamanca fica interdita a José de Castro, Miguel velará para que não se aproxime.
Raquel demorou longos minutos a ler e deglutir a mensagem, tomando vagarosamente a pena, ao passo que o sobrolho se carregava de uma expressão tensa.
E o que é isso d’O Amolador? Qual o sentido de toda esta sucessão de mal-entendidos e escaramuças, entre gente que não é, nem nunca foi ninguém, sediada em lugares que não existem, ou que, pelo menos, nunca os poderiam ter acolhido? O que é isso d’O Amolador?
Cosme parecia esperar a interpelação e deu-lhe imediata resposta.
Ao fim e ao cabo não entrei nisto, que não sei o que seja, juntamente contigo, ou depois e por tua causa? Que mais poderei eu saber do que tu? Se sem o sabermos interviemos nesta barafunda desde o início, fizemo-lo coordenados não sei bem porquê. E quando digo que sou agora O Amolador, quase pudera dizer somos, porque, em certo sentido, sinto que és e foste tu quem guia e guiou os meus passos.
Sabes tu o que é O Amolador? Eu não. O que for logo se verá, o próprio curso das coisas o revelará. Esperemos tão só que José de Castro dê o primeiro passo. Logo saberemos qual terá que dar O Amolador.
E o primeiro passo que José de Castro haveria de dar não entrara com toda a certeza nas equações de Cosme. Morreu.
Pela tardinha de uns dos últimos dias antes do Natal, subia serenamente a ladeira da Sé a caminho de casa e saiu-lhe de uma travessa, numa esquina, um sujeito encapuçado e varou-o com uma paulada de alto a baixo.
Ajuste de velhas contas, disse-se em surdina. Cosme recordou-se então do gigante que lhe entregara em Coimbra a Relaçam d’O Amolador. Velho e sábio ditado, quem vai à guerra tanto leva quanto dá. São assim os homens. Nem todos os sermões de Frei Boaventura os fariam mudar.
E agora? Interrogou Raquel, quando se soube.
Agora? Agora só me resta ser simultaneamente, ora O Amolador, ora O Trocas. Se assim não for, fica O Amolador a falar sozinho. Se alguém urdiu toda esta conjura, fê-lo com todo o esmero e com todo o gênio.
Raquel parecia querer, daquela vez, levar a compreensão do assunto até à conclusão.
E porque há de continuar esta escaramuça, agora só com um paladino na peleja, ora de um lado, ora do outro do campo? Que sentido tem tudo isto?
Cosme ficou muito tempo absorto, até responder.
Ora... sei lá eu que sentido tem... O destino estava há muito traçado. Por mim? Por ti? Por quem? A única coisa que sei e te juro é que deixaste de ser a filha do enforcado, esconjuraste o teu destino, és agora a princesa à janela do seu palácio, vendo pelejar no campo os seus dois paladinos. Que sou eu como O Amolador e eu como O Trocas.
E durante trinta anos prosseguiu a peleja contínua e buliçosa entre O Amolador e O Trocas, cujo sentido último está ainda por decifrar, mas que inundou os caminhos, através de todos os itinerantes, de Lisboa pelo menos a Antuérpia, onde chegou a sair muita matéria. Porventura, o único a alcança-lo terá sido Cosme, que todavia se apresentou sempre como o mais surpreendido de todos, de cada vez que algum desferia uma estocada. Não parava em casa nem em lugar nenhum, nem ninguém sabia, em cada momento, onde pararia. De vez em quando, sempre sem aviso, irrompia em sua casa em Salamanca, para mergulhar os olhos, cada vez mais alucinados, na serenidade aquática e verde dos de Raquel.
Nunca se chegou a saber por que razão um dia um pobre franciscano mendicante pelos caminhos o recolheu, depois de o apear do ramo grosso de um carvalho em que se enforcara, à beira de um atalho, às portas de Salamanca.
Do último libelo que saiu da pena d’O Amolador, deixo aqui um extracto. Pode ser que desvende a alguém, mais arguto, o sentido de tudo.
E considerais vós grande novidade e revolução para as ciências e o supremo conhecimento e felicidade do homem a dissecação de um cadáver. Todos sabemos que só por vergonha, ou medo, não pronunciais a intenção, ou apetite, de esfolardes os vivos. Vesalio foi nesta matéria temerário, mas leal.
E os únicos que altercam contra vós continuam a ser os clérigos, alegando que pecais contra Deus, que prometeu restituir, um dia, a vida aos corpos que criou. E aí vós altercais que também vós não pretendeis senão restituí-la. E tudo não parece senão uma peleja entre Deus e os sábios.
Mas alterco eu contra vós, porventura como altercaria o demo e com o seu riso escarninho, que grande novidade é a vossa, quando comparada com o que alcançaram os antigos sacerdotes egípcios de Hermes, esfolando os captivos arrebanhados nas carneficinas dos seus faraós, para exercitarem a arte de embalsamar?




De Raquel, para quem ler


E esta foi narrada e composta por mim, Raquel de Castro, a surda e muda, filha do enforcado, sobre umas notas soltas que Cosme de Castro, ou de Torres, meu quase ausente amor, foi deixando por aqui espalhadas, sempre que irrompia inesperado e fugaz na minha vida.
E foi-as deixando porque sabia que eu as reuniria para lhes dar a sequência desta novela, que pretende tão só demonstrar que tudo o que acontece ao acaso na vida, em seu natural fluir, não serve senão para que alguém a possa reinventar e reedificar, nunca chegaremos a saber se para lhe atribuir nexo e sentido, ou se para o negar, como a dissecação de um cadáver e o desmancho da Humana Fabrica serve tão só o propósito da ideia, ou intenção, de a poder reedificar, também nunca chegaremos a decifrar, se para o reencontrar ou para lhe negar o sentido.





De Elmano, para exorcisar o sentido


E que poderia então pretender o Damião ao recolher, desenvolver e reenfabular esta novela, que nem é certo sequer que tivesse alguma vez sido impressa e andado perdida nos entreforros de qualquer estante da biblioteca de seu tio.
Para mim foi inventada pelo títere Perdigão, na sua ânsia para atribuir qualquer sentido, ou desígnio, à vida do Damião. Ou foi encomendada ao títere pelo Damião, para emaranhar os vestígios que deixara da sua vida sem sentido e os trilhos sem destino das suas itinerâncias pelo mundo. Ou para me pregar uma partida.
Elmano dÁrgus
extractos de Palimpsesto, no prelo.
Post scriptum


E já tinha então concluído este encargo, que me impusera, de trasladar e recompor o romance que o Damião legara em esboço ao títere, quando, vasculhando uns papéis que me legara a mim, me saiu, a talhe de foice, um fragmento de uma peça peculiar que o Damião deve ter feito sair em fascículos, num período qualquer em que lhe despontou na mente retorcida retomar a publicação d’O Amolador. Com que intenção julgará o leitor, mas eu por cá fiquei a pensar que talvez este apontamento auxilie os mais distraídos, entre os quais me perfilo enfileirado, a decifrar o sentido que o astrólogo quisera porventura atribuir à novela.
Pelo estilo, este apontamento parece remontar à maturidade e ao maior vigor do Damião. É pois bem possível que esteja na origem da congeminação da novela. Nem me admiraria que o velho impresso eborense que o Damião desenterrou dos armários do tio fosse meramente uma peça satírica d’O Amolador, a partir da qual desenvolveu tanto a ideia da novela, como a do Tratado de Necrologia.














O Amolador


TRATADO DE NECROLOGIA.
OU ARTE E CIÊNCIA DE EMBALSAMAR
OS CADÁVERES, COM ENSINAMENTOS PRECIOSOS
SOBRE A CORRUPÇÃO DAS PARTES E ORGÃOS E DOS SEUS PRINCÍPIOS.
Os fundamentos da arte da dissecação,
as drogas e espécies animais e vegetais antissépticas
e odoríferas;
e um método seguro para vaticinar e adivinhar,
pela observação das entranhas.
A Medicina Forense e
métodos para decifrar a conjuntura,
na ocorrência da morte.
Segue paralelo ao discurso e exposição da doutrina
o relato de três casos,
que dão corpo e contexto a todos
os ensinamentos.
E serve para contestar a
ANDREA VESALIO.





PRÓLOGO



Deglutidores de cartapácios e roedores de notas de rodapé, em afã quotidiano e tenaz mas sempre pouco gratificante, serenos na sua humildade e cultores de génio e diligência alheia, os compiladores foram no passado os imprescindíveis testemunhos de uma transmissão ininterrupta dos saberes e das culturas. Sábios de coisa nenhuma, mas manipuladores intrépidos de todas as artes e ciências, a sua colossal erudição foi sempre proporcional de uma discrição cultivada quase até ao anonimato. Quando todos se alucinavam com o novo, dedicaram-se com empenho sereno mas desempoeirado a salvar o antigo, a assegurar que com uma biblioteca escorreita e seleccionada com astúcia qualquer ignorante pudesse fazer figura de sábio.
Num só volume, um compilador adestrado podia reunir quanto bastasse de Hipócrates, Galeno, Averrois, Avicena, Aristóteles, Homero, Xenofonte, Cícero, Plínio, Ovídio, Aulo Gélio, Dante e Santo Isidoro para que qualquer estudante cábula de Coimbra ou Salamanca se pudesse alçar a Físico Mor do Reino e ainda fosse apto a escrever uns vilancetes e animar um sarau de academia de curiosos. Se diligente e aventureiro, ainda escreveria um libelo e corrigiria a alguns mestres.
Em verdade, foi o que se passou com Andrea Vesalio. Quando escreveu o De Humana Corporis Fabrica, era um jovem empreendedor e sanguíneo, com o génio suficiente para revolver as mentalidades de contemporâneos e coevos com a sua irreverência e espírito quizilento. Com imperturbável falta de escrúpulos e de horizontes de referência éticos e morais, alguma esperteza saloia mas muito mais estultícia e umas tantas tesouras e facalhões, julgou-se capaz de observar nos corpos alheios tudo o que os outros não houveram enxergado.
Qualquer gourmand bem ilustrado e exercitado, habituado a usar o florete para esfolar e trinchar uma lebre ou uma perdiz, a procurar nelas as partes mais gostosas e mais estimulantes ao paladar e aquelas que se hão de deitar fora, a seleccionar os ossos para a sopa e as tripas para as galinhas, faria uma demonstração mais exuberante da arte e prudência no usar das lâminas. Nem lhe seria preciso ler o grego e o latim, nem conhecer as máximas da dialética de Platão.
Vesalio inaugurou então uma disciplina nova por ignorância ou falta de complacência pela prudência dos saberes antigos, porque dispunha com certeza de más compilações, traduções e resumos deficientes. E não chegara a compreender as razões porque os seus mestres não tinham usado ainda de uma consciência tão liberal quando se tratava de meter as facas às carnes, músculos e tendões dos seus conterrâneos. Porque não puderam tratar com lógica tão profana um objecto que continuavam a ter por sagrado.
Este tratado não resulta então do trabalho de um sábio ou de um mestre, mas tão só de um compilador. Movido pelas preocupações que já ficaram enunciadas e não mais.
E quer apenas enunciar e concluir que a necrologia é uma arte prudente; quero dizer de prudência. E quanto a ciência usa de toda aquela que os compiladores reuniram em cartapácios e colecções, mais algumas descobertas que vão saindo, como qualquer um pode usar para os seus fins próprios.

E propõe-se já no primeiro capítulo a doutrina que estrutura a intenção:
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte de manter os mortos bem viçosos.




LIBELO BREVE,
que serve exclusivamente de introdução
ao assunto do primeiro capítulo.

Ao conceber o universo inteiro do homem como um contencioso mutuamente exclusivo entre a vida e a morte, que é a suma de toda a sua dialética, Karl Marx e Friedrich Engels reenunciaram a trave mestra que ininterruptamente firmou o edifício das ideias e conceitos sobre a vida humana. Podê-las-ia compilar nesta máxima: a morte inicia-se exactamente no primeiro instante da vida, pelo que toda a medicina se pode julgar como um esforço estulto e vão para dar aparência de vida exultante aos corpos moribundos. Se a morte não fosse o vector axial de toda a vida, a reprodução, que é um mecanismo compensatório da necrose, seria uma função catastrófica.
O fim próprio da vida é realizar a morte. E o da reprodução realizar mais morte, para que o processo de necrose que fundamenta e justifica o universo não se interrompa. A própria história do cosmos é a história do envelhecimento ou necrose e morte das estrelas e galáxias. É a razão porque todo o pensamento religioso projecta a exultação do homem nos seus fins próprios, para a morte que, quando as mentalidades dominantes passaram a sobrevalorizar a vida, nomeou ainda de vida eterna.
Ora, todas as ciências da vida descendem de artes da morte e de operar com ela. Quando, onde e porquê ocorreu a subversão nestes princípios que nortearam todo o pensamento humano, é o que pretendemos determinar. Porque é que a necrologia se subverteu em medicina e cirurgia?
No século XVI e durante os seguintes, amadurecera uma bizarra e interminável disputa entre médicos e cirurgiões. Cada uma das corporações tratava de reivindicar para si a origem da outra.
Em verdade, aos cirurgiões competia nesta querela o papel mais quesilento, porque se tratava de obrigar aos médicos a reconhecer-lhes um estatuto nem que fosse paritário. Foi neste contexto que eles próprios propuseram remontar a sua antiguidade e origem até aos antigos sacerdotes egípcios, mestres da arte de embalsamar os cadáveres e a outros necrólogos.
A reputação transcendente e divina da sabedoria egípcia, bem como a ideia de que nela se fundamentara o melhor do lustro helénico, estava então em franca ascensão depois que Marsilio Ficino editara os fragmentos alexandrinos que a tradição remontava a Hermes Trimegisto. E a obra de Jamblico De Mysteryiis Aegypciorum tornara-se um breviário. Como se os vestígios materiais das suas intervenções operatórias pudessem ser um medium que transportasse pelos séculos as virtualidades mágicas das suas mãos, o pó de múmia tornara-se uma mezinha (medicina) tão disputada entre os pategos, que os viajantes acusavam as cáfilas magrebinas de acarvarem os cadáveres dos prisioneiros de guerras e razias nas areias do deserto, para impingirem aos estultos venezianos as cinzas.
Era ainda à tradição necrológica antiga, que a cirurgia fazia remontar a escola galénica e a sua iniciação operatória. Na época de Vesalio, o melhor do génio de Galeno deixara de se reconhecer no trabalho ordenador que empreendera ao classificar os humores universais; na sua farmacologia ou no papel axial da observação das urinas como ordenador do diagnóstico.
O que de Galeno agora se reclamava era a sua anatomia e o método de observação anatómica, que reproduzia as cerimónias e os rituais necrológicos dos sacerdotes do Nilo. Desde o século XII que em Salerno a dissecação de um cadáver se constituíra na cerimónia de consagração e no ritual de iniciação de qualquer magarefe. Tratava-se de superar o timor mortis; a partir de então qualquer cirurgião estava preparado, mesmo para assumir o homicídio como consequência indeclinável do exercício do ofício.
O papel sádico e esconjuratório que a anatomia parece ter na configuração da mentalidade médica e mesmo da sua iconografia desde o século XIV, denuncia a corrupção do saber necrológico num espírito de necrofilia mórbida. Anda em todos os manuais de história da medicina, todavia representado como epopeia heroicotrágica que ainda retomarei, o episódio de um médico austríaco que no século XVII dissecou o cadáver do filho, que assassinou no êxtase da alucinação por não encontrar outro disponível para o escalpelo.
A própria cirurgia amadureceu consciente de ser a corrupção da antiga tradição necrológica do saber humano, num mórbido e alucinatório espírito necrofílico. E o clímax do meu tratado ocorrerá quando demonstrar que, na alucinação esquizofrénica de realizar o paradoxo da vivissecação, Vesalio se constituíra no mais insigne monumento da necrofilia.
O que não diria ainda da vivissecação do cérebro?!






CAPÍTULO PRIMEIRO
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte de manter os mortos bem viçosos.

O mais natural é que qualquer leigo julgue que o exercício de embalsamar um cadáver consiste em interromper o processo de necrose dos tecidos e orgãos que, mesmo após a morte do organismo considerado como um todo e um universo, continuam vivos. Mesmo um labrego sabe que a morte de um organismo não determina o cessar imediato e súbito da vida em cada uma das partes, cuja necrose prossegue por tempos ainda difíceis de determinar;. Basta que se tenha, um dia, vivido o espectáculo sempre hilariante e patético de ver uma galinha correr desenfreada por um terreiro com o pescoço pendurado.
Os leigos observam sempre as coisas com tanta atenção e astúcia como um sábio. A sua condição revela-se quando passam a julgar sobre aquilo que observaram.
Se o processo de embalsamar um cadáver consistisse em interromper a necrose de cada orgão, sistema, ou tecido do organismo já morto como tal, só garantiria que a contradição estrutural entre a vida e a morte iria prosseguir indeterminadamente e de forma muito mais violenta. A condição que daí adviria ao cadáver é impossível de imaginar, mas parece-me que toda a sua massa reverteria numa chaga viva, informe e incontrolável, já incapaz de se sarar.
O que o embalsamador pretende é reduzir toda a massa do cadáver ao estado de morte definitivo e radical, precipitando uma morte violenta de cada parte e sistema. A necrologia opera a morte e não a vida, é a ciência ou arte da morte e prossegue o estudo minucioso do processo de necrose dos organismos, para o controlar e precipitar, impedindo que a renitência da vida em não reconhecer a sua precariedade perturbe o repouso da morte no seu triunfo, que é o fim e a causa inexorável de todo o universo. A vida exultante ou renitente é um estado patológico crítico da morte, inadmissível no equilíbrio do cosmos, pelo que deve ser corrigido e sarado.
Quando um embalsamador retalha um corpo, é a morte que observa e contempla e o repouso que celebra. Onde encontra o mínimo sintoma de vida, incomoda-se e alarma-se, trata imediatamente de o erradicar, nem que para isso tenha que separar o abcesso do são até que reste exclusivamente o invólucro ressequido e imune. È por isso que as vísceras, onde sob várias formas mesmo alógenas como as bacterianas ou microbianas a vida parece mais renitente, depois de várias ablacções e esconjuras são em geral incineradas ou lançadas aos mais necrófilos bichos, como as hienas ou abutres. A incineração é a resolução mais radical dos necrólogos e merecer-me-á ainda comentários detalhados.
Porque contemplou o mistério supremo da morte no seu triunfo e foi o seu sacerdote e o agente da resolução definitiva, o embalsamador está prestes a transportar-se para o lado da transcendência, ganha e opera poderes insuspeitados, adivinha e vaticina.
Os primitivos cristãos eram ainda sacerdotes necrófagos e necrólogos. Eles ingeriam simbolicamente a carne e o sangue do cordeiro imolado para participar da necrose cósmica e celebravam o Filho de Deus na sua apoteose de cadáver, pois não pode ser outro o sentido da Sua ressurreição e do Seu triunfo na vida eterna. A própria religião cristã subverteu o profundo sentido necrológico da sua teologia, numa paródia de rituais e práticas sociais e culturais de uma necrofilia aberrante. São sintoma disso as crises cíclicas de pânico e histerismo perante a morte com que foi regenerando o seu papel dirigente numa sociedade leviana que celebra estultamente o triunfo da vida e que esconjura a morte através de rituais de alucinação estética pela necrose e sua contemplação.
A arte de embalsamar é pois substancialmente uma necrologia, no sentido mais radical da disciplina.
É sabido e não merece ser disputado, todavia ainda tratarei de o explicitar mesmo recorrendo ao paradoxo, que os médicos da antiguidade só puderam configurar algumas ideias relativamente operacionais sobre a morfologia do corpo humano e das suas partes, os estados patológicos da vida dos organismos, orgãos ou sistemas e sobre a relação violenta e omnipresente entre a necrose e a vida, no contacto com os sacerdotes necrólogos que dissecavam, estudavam e embalsamavam os cadáveres. Aos poucos foram-se apropriando dos segredos do seu saber e dos seus rituais, para os subverter em medicina.
O que tratarei a seguir é de demonstrar que o insucesso na aplicação de todo esse saber hermético à medicina, que é toda a sua história, advém do simples facto de os médicos nunca terem assumido ou querido assumir a consciência de que os conhecimentos de que se serviam para prorrogar a vida tinham sido ordenados para precipitar a morte na sua exultação radical.
Para compreender a vida e os seus princípios, os médicos e cirurgiões tratavam de contemplar a morte e os cadáveres, segundo os métodos e os ritos que haviam aprendido dos sacerdotes necrólogos embalsamadores. Que poderia decorrer de um tal paradoxo, senão a aberrante precipitação na alucinação necrofílica?

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Elmano d'Argus

Elmano d'Argus


O vigilante companheiro de Damião das Bróteas, cego e astrólogo


Componente obscura e literária da ubíqua personalidade de Manuel de Castro Nunes