sexta-feira, 18 de julho de 2008

Elmano d'Argus
extractos de Palimpsesto, no prelo.

Desfolhada



E com todas estas voltas e arquivoltas ia bem adiantado o Outono, os caminhos atapetados de folhas secas varridas pelas ventanias, os dias já curtos, nos tonéis o vinho novo a fermentar, todos, homens e bichos, a atulharem as tocas para os dias em que não se pode sair fora.
E chegado Cosme pela tarde, com os últimos estertores do Sol já pálido a balbuciar na linha do horizonte, os rebanhos a recolherem aos redis, os primeiros lobos a uivarem ao longe nas serranias, os transeuntes cosidos com as paredes nas vielas, recebeu-o Miguel no átrio térreo da casa, com ar de caso.

- Está cá aboletado, há dois dias, o Senhor Frade.

- E então?

- Então, Senhor, vem com ar muito abatido. Se não se tratasse do Senhor Frade, com o seu rosto de lua cheia irradiante de pálidas quietudes, diria que vem apavorado.

- Deixa-te de paráfrases, raio, que quer o frade?

- Espera-vos, claro. Parece, de resto, vir só de fugida, com o demo na peugada.

- Já veremos o que traz o frade. E minha mulher?

- Está no salão, recolhida, com ordem de ninguém entrar, a examinar uns papéis.

Cosme subiu e bateu com força na pesada porta do salão, repetidas vezes, até que Raquel abriu. Vinha com o semblante crispado, profundamente abatida e perturbada. Quando encarou Cosme o rosto desanuviou, mas logo lhe romperam os mananciais dos olhos em lágrimas, lançando-se em desesperado abraço.
Cosme limpou-lhe o rosto, compondo-lhe os cabelos. Ela afastou-se e interpelou em mímica sobre o que pretendia o frade. Cosme encolheu os ombros, não sabia ainda, logo se veria.
Raquel entrou então, apontou o tampo do bufete coberto de papelada em desalinho, comunicando que aquela tralha trouxera-a o frade. Cosme não prestou muita atenção, pegou na pena, mergulhou-a no tinteiro e, no verso de uma folha ao acaso escreveu: Sei que tens ainda algo para me comunicar sobre tudo isto, que me tens sonegado, por amor, tenho a certeza.
Raquel respondeu, após longa reflexão e depois de rasurar sucessivamente vários rabiscos, tentando encontrar a melhor forma de comunicar algo, ou decidir se o faria.
Vou trair compromissos que tinha para comigo própria, pois jurara que jamais intrometeria entre nós este assunto, deverias ser tu a desvendar este mistério. Tu reconheceste como minha a caligrafia da nota aposta à margem da quarta página da Relaçam d’O Amolador.
Ora, meu amor, eu, como qualquer um, de resto, reconheceu logo a tua no texto integral do manuscrito. Tudo o que se tem passado desde há cerca de dois anos, tem como móbil a interpretação deste mistério.
Cosme teve de imediato uma reacção de cólera incontrolada, quase pueril. Depois recuperou a serenidade.
Ora essa, a Relaçam tem quase vinte anos, se já tinha irrompido no mundo, como todavia a escreveria?
Raquel estava decidida a concluir aquele assunto.
Não. A Relaçam de que falamos não tem vinte anos, o episódio relatado, porventura com alguns acrescentos, ou deformações, terá vinte ou mais anos. Teria corrido na altura uma Relaçam d’O Amolador, que ninguém conhece ou de que ninguém se lembra, pois O Amolador há mais de uma década que não faz sair as suas novidades, dedicou-se a outras coisas, que vão saindo impressas por aí.
Devias agora falar com o frade.
Raquel aguardou expectante que Cosme terminasse a leitura, depois retirou-se apontando o bufete, como se dissesse, lê.
O jovem permaneceu encarcerado no salão durante toda a noite, ora dormitando no cadeirão, ora reflectindo, ora examinando a papelada que o frade trouxera.
Tratava-se de resmas e resmas de pequenas brochuras, percorrendo todos os gêneros da literatura proscrita, que circulava sem licenças nem referências de sede de edição ou impressão, ou com referências fictícias.
Tudo indiciava que todo o conjunto irradiava de duas fontes, em sucessivo e alternado itinerário de respostas e contra-respostas, agora ataco-te com uma farsa, tu contra-atacas com uma novela, eu com um tratado, tu com uma ode, um libelo, um folheto, uma sátira, uma relação, tudo estruturado pelos tópicos da condição das ciências e suas novidades, mormente da medicina, das artes da adivinhação e do esconjuro, quiromancias, astrologias. De um lado pelejava O Amolador, do outro O Trocas. Em duas ou três peças O Amolador insinuava chocarreiramente que O Trocas era anagrama de Simão de Castro, que nem existia, pois há muito se enforcara e o seu cadáver fora rigorosamente dissecado no teatro anatômico por um mestre de Coimbra, ao que ele assistira como seu ajudante.
A peça todavia mais paradoxal era uma das mais recentes estocadas d’O Amolador, com a forma displicente de um libelo contestando os métodos e os procedimentos, em que atribuía a O Trocas a vivissecação do próprio filho, com o propósito de o devolver renovado e aperfeiçoado à vida. Tanto a descrição da operação como a contestação dos procedimentos emanavam um realismo de arrepiar os cabelos. Parecia não ter mais do que dois anos.
Mas, logo de seguida, O Amolador saíra à liça, a contestar a autoria.
Cosme saiu do salão com o romper do dia e os primeiros buliços de gente pela casa e pediu a Miguel que chamasse então o frade.
Frei Boaventura apresentou-se com um aspecto mais abatido ainda do que Cosme esperava. Parecia mesmo que passara a noite em vigília, com os olhos mergulhados nas órbitas maceradas.

- Nunca esperei que vos recolhêsseis aqui em Salamanca, Senhor Frade. Pelos vistos, lá por Lisboa faltou-vos subitamente ocupação.

- Nem mais, Senhor. Vosso tio tomou progressivamente o encargo de tudo, sonegou-me tudo, passei a ser seu confessor e digo-lhe as missas pela manhã.

- O Senhor José de Castro não é meu tio, bem o sabeis. E que vos confessa José de Castro?

- Bem... em verdade não se confessa, parece mais querer confessar-me a mim, ou a vós e a um tal Amolador através de mim. Digamos que me interroga. Com veementes ameaças, por vezes. Chego a imaginar-me estendido numa laje, dissecado com o coração para um lado e os bofes para o outro.

- Dissecado?

O frade ficou por instantes irrequieto, olhando ora para um lado, ora para o outro, sem se fixar em nada.

- Não sabíeis que José de Castro foi, antes de tudo o que se tornou na vida e de começar a calcorrear os caminhos, o discípulo dilecto de Dom Francisco Canete, cirurgião no hospital da universidade?

Cosme ficou ainda uns instantes boquiaberto. Depois dirigiu-se ao frade peremptoriamente, como quem não admite mais rodeios.

- Vá, Senhor Frade, desembuche de uma vez por todas, deixe-se de volteios, conte o que tem para contar, que me começa a faltar a paciência.

O frade reflectiu um pouco e, quando respondeu parecia que recobrara o ânimo, com a intenção de ser breve e conciso.

- José de Castro não é de facto vosso tio, pode muito bem ser vosso pai, isso nunca o saberemos.
Lestes a papelada que vos trouxe. Ora isso foi o que se passou durante muitos anos, uma disputa permanente entre duas confrarias, que teve como protagonistas José de Castro de um lado e O Amolador do outro, sobre um tema qualquer que poucos conseguiram interpretar, mas que tinha a ver com o tema da dissecação, da medicina, do conhecimento, das ciências genericamente e das artes, com o seu móbil e o seu préstimo, com o que se deve e não deve conhecer e como. Tudo corria alegoricamente de forma insinuante, sem ninguém se revelar.
Afonso de Torres mascarou durante muito tempo a intervenção de José de Castro, mas num dado momento passou-se para O Amolador. José de Castro tomou conta da oficina de Afonso de Torres, mas Afonso de Torres tinha em Évora um cunhado, com muitas ligações por aí fora, onde ficou sediada a intervenção d’O Amolador.
Eu, que tinha uma velha dívida de honra para com Afonso de Torres, fiquei com ele, como seu guia e seu guarda. Muito útil lhe foi, para fazer circular os negócios pelos caminhos, a mobilidade dos meus irmãos de São Francisco.
Ora, sobre o âmago da questão não vos posso mais adiantar. Assisti, diligente, à disputa entre duas confrarias sem lhe enxergar o sentido. Vós, penso, estais mais apto para o decifrar.
Isso foi o que se passou até há dois anos. Depois O Amolador desatou a insinuar que O Trocas passara a fazer sair como de sua autoria, d’O Amolador, coisas absurdas e desgarradas que confundiam tudo. A nova matéria iniciou-se com uma Relaçam da dissecação de um enforcado, sobre que O Amolador já tinha discorrido vinte anos antes, mas vinha de novo à liça com alterações. José de Castro ficou perturbadíssimo, num buliço inquieto pelos caminhos, a conjurar. Planeou então que substituiríeis Afonso de Torres com brevidade.
A partir de então, Senhor, só vós sabeis porque não o conseguiu.

- Eu?

- Pois, vós. É o que mais perturba José de Castro. Ele também não sabe.

- Ora, Senhor Frade, porque porventura eu sou O Amolador. Ficareis por cá. Deixaremos a oficina de Lisboa a José de Castro, para que possa continuar a altercar com O Amolador.

Cosme parecia dar assim por concluído o negócio, com um sorriso insinuante no rosto, como se não levasse a coisa a sério. Mas o frade tinha ainda uma surpreendente novidade.

- Devo comunicar-vos ainda uma novidade. Alguém exumou o cadáver de Afonso de Torres, que foi dissecado e embalsamado, para depois o pendurarem pelo pescoço de um barrote na sua oficina. Uma obra macabra. Garanto-vos que muito poucos, só quase eu e vós, sabíamos sob que laje jazia, na nave da Igreja do Mosteiro.

- E que pretenderia, quem quer que fosse, com tal desaforo?

- Bem... é óbvio, Senhor. Tão só comunicar que renasce Simão de Castro. Resta saber, desta vez, de quem será pai o enforcado.

Cosme apartou-se de tudo e de todos durante uma semana, escreveu muito, rasgou arráteis de laudas e rascunhos, só saía para engolir na cozinha fugazes refeições, ou para ficar, por breves mas intensos momentos junto de Raquel, mudos, de olhos fixos um no outro, sondando as profundidades das almas.
Depois, um dia pela manhã, saiu com novo ânimo estampado no rosto e procurou Raquel. Levava já escrito o prólogo do mudo diálogo.
Eu sou O Amolador, agora e não sei desde quando. O Amolador sai de Évora, passa a ficar aqui aboletado, nos intervalos das suas itinerâncias, e daqui sairá tudo o que tiver que sair com o seu nome, embora conte com mais alguns sítios para se ir imprimindo, mormente a casa de meu tio em Évora. Tu, juntamente com o frade, edificarás a rede dos itinerantes agentes para pôr tudo a circular. Salamanca fica interdita a José de Castro, Miguel velará para que não se aproxime.
Raquel demorou longos minutos a ler e deglutir a mensagem, tomando vagarosamente a pena, ao passo que o sobrolho se carregava de uma expressão tensa.
E o que é isso d’O Amolador? Qual o sentido de toda esta sucessão de mal-entendidos e escaramuças, entre gente que não é, nem nunca foi ninguém, sediada em lugares que não existem, ou que, pelo menos, nunca os poderiam ter acolhido? O que é isso d’O Amolador?
Cosme parecia esperar a interpelação e deu-lhe imediata resposta.
Ao fim e ao cabo não entrei nisto, que não sei o que seja, juntamente contigo, ou depois e por tua causa? Que mais poderei eu saber do que tu? Se sem o sabermos interviemos nesta barafunda desde o início, fizemo-lo coordenados não sei bem porquê. E quando digo que sou agora O Amolador, quase pudera dizer somos, porque, em certo sentido, sinto que és e foste tu quem guia e guiou os meus passos.
Sabes tu o que é O Amolador? Eu não. O que for logo se verá, o próprio curso das coisas o revelará. Esperemos tão só que José de Castro dê o primeiro passo. Logo saberemos qual terá que dar O Amolador.
E o primeiro passo que José de Castro haveria de dar não entrara com toda a certeza nas equações de Cosme. Morreu.
Pela tardinha de uns dos últimos dias antes do Natal, subia serenamente a ladeira da Sé a caminho de casa e saiu-lhe de uma travessa, numa esquina, um sujeito encapuçado e varou-o com uma paulada de alto a baixo.
Ajuste de velhas contas, disse-se em surdina. Cosme recordou-se então do gigante que lhe entregara em Coimbra a Relaçam d’O Amolador. Velho e sábio ditado, quem vai à guerra tanto leva quanto dá. São assim os homens. Nem todos os sermões de Frei Boaventura os fariam mudar.
E agora? Interrogou Raquel, quando se soube.
Agora? Agora só me resta ser simultaneamente, ora O Amolador, ora O Trocas. Se assim não for, fica O Amolador a falar sozinho. Se alguém urdiu toda esta conjura, fê-lo com todo o esmero e com todo o gênio.
Raquel parecia querer, daquela vez, levar a compreensão do assunto até à conclusão.
E porque há de continuar esta escaramuça, agora só com um paladino na peleja, ora de um lado, ora do outro do campo? Que sentido tem tudo isto?
Cosme ficou muito tempo absorto, até responder.
Ora... sei lá eu que sentido tem... O destino estava há muito traçado. Por mim? Por ti? Por quem? A única coisa que sei e te juro é que deixaste de ser a filha do enforcado, esconjuraste o teu destino, és agora a princesa à janela do seu palácio, vendo pelejar no campo os seus dois paladinos. Que sou eu como O Amolador e eu como O Trocas.
E durante trinta anos prosseguiu a peleja contínua e buliçosa entre O Amolador e O Trocas, cujo sentido último está ainda por decifrar, mas que inundou os caminhos, através de todos os itinerantes, de Lisboa pelo menos a Antuérpia, onde chegou a sair muita matéria. Porventura, o único a alcança-lo terá sido Cosme, que todavia se apresentou sempre como o mais surpreendido de todos, de cada vez que algum desferia uma estocada. Não parava em casa nem em lugar nenhum, nem ninguém sabia, em cada momento, onde pararia. De vez em quando, sempre sem aviso, irrompia em sua casa em Salamanca, para mergulhar os olhos, cada vez mais alucinados, na serenidade aquática e verde dos de Raquel.
Nunca se chegou a saber por que razão um dia um pobre franciscano mendicante pelos caminhos o recolheu, depois de o apear do ramo grosso de um carvalho em que se enforcara, à beira de um atalho, às portas de Salamanca.
Do último libelo que saiu da pena d’O Amolador, deixo aqui um extracto. Pode ser que desvende a alguém, mais arguto, o sentido de tudo.
E considerais vós grande novidade e revolução para as ciências e o supremo conhecimento e felicidade do homem a dissecação de um cadáver. Todos sabemos que só por vergonha, ou medo, não pronunciais a intenção, ou apetite, de esfolardes os vivos. Vesalio foi nesta matéria temerário, mas leal.
E os únicos que altercam contra vós continuam a ser os clérigos, alegando que pecais contra Deus, que prometeu restituir, um dia, a vida aos corpos que criou. E aí vós altercais que também vós não pretendeis senão restituí-la. E tudo não parece senão uma peleja entre Deus e os sábios.
Mas alterco eu contra vós, porventura como altercaria o demo e com o seu riso escarninho, que grande novidade é a vossa, quando comparada com o que alcançaram os antigos sacerdotes egípcios de Hermes, esfolando os captivos arrebanhados nas carneficinas dos seus faraós, para exercitarem a arte de embalsamar?




De Raquel, para quem ler


E esta foi narrada e composta por mim, Raquel de Castro, a surda e muda, filha do enforcado, sobre umas notas soltas que Cosme de Castro, ou de Torres, meu quase ausente amor, foi deixando por aqui espalhadas, sempre que irrompia inesperado e fugaz na minha vida.
E foi-as deixando porque sabia que eu as reuniria para lhes dar a sequência desta novela, que pretende tão só demonstrar que tudo o que acontece ao acaso na vida, em seu natural fluir, não serve senão para que alguém a possa reinventar e reedificar, nunca chegaremos a saber se para lhe atribuir nexo e sentido, ou se para o negar, como a dissecação de um cadáver e o desmancho da Humana Fabrica serve tão só o propósito da ideia, ou intenção, de a poder reedificar, também nunca chegaremos a decifrar, se para o reencontrar ou para lhe negar o sentido.





De Elmano, para exorcisar o sentido


E que poderia então pretender o Damião ao recolher, desenvolver e reenfabular esta novela, que nem é certo sequer que tivesse alguma vez sido impressa e andado perdida nos entreforros de qualquer estante da biblioteca de seu tio.
Para mim foi inventada pelo títere Perdigão, na sua ânsia para atribuir qualquer sentido, ou desígnio, à vida do Damião. Ou foi encomendada ao títere pelo Damião, para emaranhar os vestígios que deixara da sua vida sem sentido e os trilhos sem destino das suas itinerâncias pelo mundo. Ou para me pregar uma partida.
Elmano dÁrgus
extractos de Palimpsesto, no prelo.
Post scriptum


E já tinha então concluído este encargo, que me impusera, de trasladar e recompor o romance que o Damião legara em esboço ao títere, quando, vasculhando uns papéis que me legara a mim, me saiu, a talhe de foice, um fragmento de uma peça peculiar que o Damião deve ter feito sair em fascículos, num período qualquer em que lhe despontou na mente retorcida retomar a publicação d’O Amolador. Com que intenção julgará o leitor, mas eu por cá fiquei a pensar que talvez este apontamento auxilie os mais distraídos, entre os quais me perfilo enfileirado, a decifrar o sentido que o astrólogo quisera porventura atribuir à novela.
Pelo estilo, este apontamento parece remontar à maturidade e ao maior vigor do Damião. É pois bem possível que esteja na origem da congeminação da novela. Nem me admiraria que o velho impresso eborense que o Damião desenterrou dos armários do tio fosse meramente uma peça satírica d’O Amolador, a partir da qual desenvolveu tanto a ideia da novela, como a do Tratado de Necrologia.














O Amolador


TRATADO DE NECROLOGIA.
OU ARTE E CIÊNCIA DE EMBALSAMAR
OS CADÁVERES, COM ENSINAMENTOS PRECIOSOS
SOBRE A CORRUPÇÃO DAS PARTES E ORGÃOS E DOS SEUS PRINCÍPIOS.
Os fundamentos da arte da dissecação,
as drogas e espécies animais e vegetais antissépticas
e odoríferas;
e um método seguro para vaticinar e adivinhar,
pela observação das entranhas.
A Medicina Forense e
métodos para decifrar a conjuntura,
na ocorrência da morte.
Segue paralelo ao discurso e exposição da doutrina
o relato de três casos,
que dão corpo e contexto a todos
os ensinamentos.
E serve para contestar a
ANDREA VESALIO.





PRÓLOGO



Deglutidores de cartapácios e roedores de notas de rodapé, em afã quotidiano e tenaz mas sempre pouco gratificante, serenos na sua humildade e cultores de génio e diligência alheia, os compiladores foram no passado os imprescindíveis testemunhos de uma transmissão ininterrupta dos saberes e das culturas. Sábios de coisa nenhuma, mas manipuladores intrépidos de todas as artes e ciências, a sua colossal erudição foi sempre proporcional de uma discrição cultivada quase até ao anonimato. Quando todos se alucinavam com o novo, dedicaram-se com empenho sereno mas desempoeirado a salvar o antigo, a assegurar que com uma biblioteca escorreita e seleccionada com astúcia qualquer ignorante pudesse fazer figura de sábio.
Num só volume, um compilador adestrado podia reunir quanto bastasse de Hipócrates, Galeno, Averrois, Avicena, Aristóteles, Homero, Xenofonte, Cícero, Plínio, Ovídio, Aulo Gélio, Dante e Santo Isidoro para que qualquer estudante cábula de Coimbra ou Salamanca se pudesse alçar a Físico Mor do Reino e ainda fosse apto a escrever uns vilancetes e animar um sarau de academia de curiosos. Se diligente e aventureiro, ainda escreveria um libelo e corrigiria a alguns mestres.
Em verdade, foi o que se passou com Andrea Vesalio. Quando escreveu o De Humana Corporis Fabrica, era um jovem empreendedor e sanguíneo, com o génio suficiente para revolver as mentalidades de contemporâneos e coevos com a sua irreverência e espírito quizilento. Com imperturbável falta de escrúpulos e de horizontes de referência éticos e morais, alguma esperteza saloia mas muito mais estultícia e umas tantas tesouras e facalhões, julgou-se capaz de observar nos corpos alheios tudo o que os outros não houveram enxergado.
Qualquer gourmand bem ilustrado e exercitado, habituado a usar o florete para esfolar e trinchar uma lebre ou uma perdiz, a procurar nelas as partes mais gostosas e mais estimulantes ao paladar e aquelas que se hão de deitar fora, a seleccionar os ossos para a sopa e as tripas para as galinhas, faria uma demonstração mais exuberante da arte e prudência no usar das lâminas. Nem lhe seria preciso ler o grego e o latim, nem conhecer as máximas da dialética de Platão.
Vesalio inaugurou então uma disciplina nova por ignorância ou falta de complacência pela prudência dos saberes antigos, porque dispunha com certeza de más compilações, traduções e resumos deficientes. E não chegara a compreender as razões porque os seus mestres não tinham usado ainda de uma consciência tão liberal quando se tratava de meter as facas às carnes, músculos e tendões dos seus conterrâneos. Porque não puderam tratar com lógica tão profana um objecto que continuavam a ter por sagrado.
Este tratado não resulta então do trabalho de um sábio ou de um mestre, mas tão só de um compilador. Movido pelas preocupações que já ficaram enunciadas e não mais.
E quer apenas enunciar e concluir que a necrologia é uma arte prudente; quero dizer de prudência. E quanto a ciência usa de toda aquela que os compiladores reuniram em cartapácios e colecções, mais algumas descobertas que vão saindo, como qualquer um pode usar para os seus fins próprios.

E propõe-se já no primeiro capítulo a doutrina que estrutura a intenção:
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte de manter os mortos bem viçosos.




LIBELO BREVE,
que serve exclusivamente de introdução
ao assunto do primeiro capítulo.

Ao conceber o universo inteiro do homem como um contencioso mutuamente exclusivo entre a vida e a morte, que é a suma de toda a sua dialética, Karl Marx e Friedrich Engels reenunciaram a trave mestra que ininterruptamente firmou o edifício das ideias e conceitos sobre a vida humana. Podê-las-ia compilar nesta máxima: a morte inicia-se exactamente no primeiro instante da vida, pelo que toda a medicina se pode julgar como um esforço estulto e vão para dar aparência de vida exultante aos corpos moribundos. Se a morte não fosse o vector axial de toda a vida, a reprodução, que é um mecanismo compensatório da necrose, seria uma função catastrófica.
O fim próprio da vida é realizar a morte. E o da reprodução realizar mais morte, para que o processo de necrose que fundamenta e justifica o universo não se interrompa. A própria história do cosmos é a história do envelhecimento ou necrose e morte das estrelas e galáxias. É a razão porque todo o pensamento religioso projecta a exultação do homem nos seus fins próprios, para a morte que, quando as mentalidades dominantes passaram a sobrevalorizar a vida, nomeou ainda de vida eterna.
Ora, todas as ciências da vida descendem de artes da morte e de operar com ela. Quando, onde e porquê ocorreu a subversão nestes princípios que nortearam todo o pensamento humano, é o que pretendemos determinar. Porque é que a necrologia se subverteu em medicina e cirurgia?
No século XVI e durante os seguintes, amadurecera uma bizarra e interminável disputa entre médicos e cirurgiões. Cada uma das corporações tratava de reivindicar para si a origem da outra.
Em verdade, aos cirurgiões competia nesta querela o papel mais quesilento, porque se tratava de obrigar aos médicos a reconhecer-lhes um estatuto nem que fosse paritário. Foi neste contexto que eles próprios propuseram remontar a sua antiguidade e origem até aos antigos sacerdotes egípcios, mestres da arte de embalsamar os cadáveres e a outros necrólogos.
A reputação transcendente e divina da sabedoria egípcia, bem como a ideia de que nela se fundamentara o melhor do lustro helénico, estava então em franca ascensão depois que Marsilio Ficino editara os fragmentos alexandrinos que a tradição remontava a Hermes Trimegisto. E a obra de Jamblico De Mysteryiis Aegypciorum tornara-se um breviário. Como se os vestígios materiais das suas intervenções operatórias pudessem ser um medium que transportasse pelos séculos as virtualidades mágicas das suas mãos, o pó de múmia tornara-se uma mezinha (medicina) tão disputada entre os pategos, que os viajantes acusavam as cáfilas magrebinas de acarvarem os cadáveres dos prisioneiros de guerras e razias nas areias do deserto, para impingirem aos estultos venezianos as cinzas.
Era ainda à tradição necrológica antiga, que a cirurgia fazia remontar a escola galénica e a sua iniciação operatória. Na época de Vesalio, o melhor do génio de Galeno deixara de se reconhecer no trabalho ordenador que empreendera ao classificar os humores universais; na sua farmacologia ou no papel axial da observação das urinas como ordenador do diagnóstico.
O que de Galeno agora se reclamava era a sua anatomia e o método de observação anatómica, que reproduzia as cerimónias e os rituais necrológicos dos sacerdotes do Nilo. Desde o século XII que em Salerno a dissecação de um cadáver se constituíra na cerimónia de consagração e no ritual de iniciação de qualquer magarefe. Tratava-se de superar o timor mortis; a partir de então qualquer cirurgião estava preparado, mesmo para assumir o homicídio como consequência indeclinável do exercício do ofício.
O papel sádico e esconjuratório que a anatomia parece ter na configuração da mentalidade médica e mesmo da sua iconografia desde o século XIV, denuncia a corrupção do saber necrológico num espírito de necrofilia mórbida. Anda em todos os manuais de história da medicina, todavia representado como epopeia heroicotrágica que ainda retomarei, o episódio de um médico austríaco que no século XVII dissecou o cadáver do filho, que assassinou no êxtase da alucinação por não encontrar outro disponível para o escalpelo.
A própria cirurgia amadureceu consciente de ser a corrupção da antiga tradição necrológica do saber humano, num mórbido e alucinatório espírito necrofílico. E o clímax do meu tratado ocorrerá quando demonstrar que, na alucinação esquizofrénica de realizar o paradoxo da vivissecação, Vesalio se constituíra no mais insigne monumento da necrofilia.
O que não diria ainda da vivissecação do cérebro?!






CAPÍTULO PRIMEIRO
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte de manter os mortos bem viçosos.

O mais natural é que qualquer leigo julgue que o exercício de embalsamar um cadáver consiste em interromper o processo de necrose dos tecidos e orgãos que, mesmo após a morte do organismo considerado como um todo e um universo, continuam vivos. Mesmo um labrego sabe que a morte de um organismo não determina o cessar imediato e súbito da vida em cada uma das partes, cuja necrose prossegue por tempos ainda difíceis de determinar;. Basta que se tenha, um dia, vivido o espectáculo sempre hilariante e patético de ver uma galinha correr desenfreada por um terreiro com o pescoço pendurado.
Os leigos observam sempre as coisas com tanta atenção e astúcia como um sábio. A sua condição revela-se quando passam a julgar sobre aquilo que observaram.
Se o processo de embalsamar um cadáver consistisse em interromper a necrose de cada orgão, sistema, ou tecido do organismo já morto como tal, só garantiria que a contradição estrutural entre a vida e a morte iria prosseguir indeterminadamente e de forma muito mais violenta. A condição que daí adviria ao cadáver é impossível de imaginar, mas parece-me que toda a sua massa reverteria numa chaga viva, informe e incontrolável, já incapaz de se sarar.
O que o embalsamador pretende é reduzir toda a massa do cadáver ao estado de morte definitivo e radical, precipitando uma morte violenta de cada parte e sistema. A necrologia opera a morte e não a vida, é a ciência ou arte da morte e prossegue o estudo minucioso do processo de necrose dos organismos, para o controlar e precipitar, impedindo que a renitência da vida em não reconhecer a sua precariedade perturbe o repouso da morte no seu triunfo, que é o fim e a causa inexorável de todo o universo. A vida exultante ou renitente é um estado patológico crítico da morte, inadmissível no equilíbrio do cosmos, pelo que deve ser corrigido e sarado.
Quando um embalsamador retalha um corpo, é a morte que observa e contempla e o repouso que celebra. Onde encontra o mínimo sintoma de vida, incomoda-se e alarma-se, trata imediatamente de o erradicar, nem que para isso tenha que separar o abcesso do são até que reste exclusivamente o invólucro ressequido e imune. È por isso que as vísceras, onde sob várias formas mesmo alógenas como as bacterianas ou microbianas a vida parece mais renitente, depois de várias ablacções e esconjuras são em geral incineradas ou lançadas aos mais necrófilos bichos, como as hienas ou abutres. A incineração é a resolução mais radical dos necrólogos e merecer-me-á ainda comentários detalhados.
Porque contemplou o mistério supremo da morte no seu triunfo e foi o seu sacerdote e o agente da resolução definitiva, o embalsamador está prestes a transportar-se para o lado da transcendência, ganha e opera poderes insuspeitados, adivinha e vaticina.
Os primitivos cristãos eram ainda sacerdotes necrófagos e necrólogos. Eles ingeriam simbolicamente a carne e o sangue do cordeiro imolado para participar da necrose cósmica e celebravam o Filho de Deus na sua apoteose de cadáver, pois não pode ser outro o sentido da Sua ressurreição e do Seu triunfo na vida eterna. A própria religião cristã subverteu o profundo sentido necrológico da sua teologia, numa paródia de rituais e práticas sociais e culturais de uma necrofilia aberrante. São sintoma disso as crises cíclicas de pânico e histerismo perante a morte com que foi regenerando o seu papel dirigente numa sociedade leviana que celebra estultamente o triunfo da vida e que esconjura a morte através de rituais de alucinação estética pela necrose e sua contemplação.
A arte de embalsamar é pois substancialmente uma necrologia, no sentido mais radical da disciplina.
É sabido e não merece ser disputado, todavia ainda tratarei de o explicitar mesmo recorrendo ao paradoxo, que os médicos da antiguidade só puderam configurar algumas ideias relativamente operacionais sobre a morfologia do corpo humano e das suas partes, os estados patológicos da vida dos organismos, orgãos ou sistemas e sobre a relação violenta e omnipresente entre a necrose e a vida, no contacto com os sacerdotes necrólogos que dissecavam, estudavam e embalsamavam os cadáveres. Aos poucos foram-se apropriando dos segredos do seu saber e dos seus rituais, para os subverter em medicina.
O que tratarei a seguir é de demonstrar que o insucesso na aplicação de todo esse saber hermético à medicina, que é toda a sua história, advém do simples facto de os médicos nunca terem assumido ou querido assumir a consciência de que os conhecimentos de que se serviam para prorrogar a vida tinham sido ordenados para precipitar a morte na sua exultação radical.
Para compreender a vida e os seus princípios, os médicos e cirurgiões tratavam de contemplar a morte e os cadáveres, segundo os métodos e os ritos que haviam aprendido dos sacerdotes necrólogos embalsamadores. Que poderia decorrer de um tal paradoxo, senão a aberrante precipitação na alucinação necrofílica?

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Elmano d'Argus

Elmano d'Argus


O vigilante companheiro de Damião das Bróteas, cego e astrólogo


Componente obscura e literária da ubíqua personalidade de Manuel de Castro Nunes