sexta-feira, 18 de julho de 2008

Elmano dÁrgus
extractos de Palimpsesto, no prelo.
Post scriptum


E já tinha então concluído este encargo, que me impusera, de trasladar e recompor o romance que o Damião legara em esboço ao títere, quando, vasculhando uns papéis que me legara a mim, me saiu, a talhe de foice, um fragmento de uma peça peculiar que o Damião deve ter feito sair em fascículos, num período qualquer em que lhe despontou na mente retorcida retomar a publicação d’O Amolador. Com que intenção julgará o leitor, mas eu por cá fiquei a pensar que talvez este apontamento auxilie os mais distraídos, entre os quais me perfilo enfileirado, a decifrar o sentido que o astrólogo quisera porventura atribuir à novela.
Pelo estilo, este apontamento parece remontar à maturidade e ao maior vigor do Damião. É pois bem possível que esteja na origem da congeminação da novela. Nem me admiraria que o velho impresso eborense que o Damião desenterrou dos armários do tio fosse meramente uma peça satírica d’O Amolador, a partir da qual desenvolveu tanto a ideia da novela, como a do Tratado de Necrologia.














O Amolador


TRATADO DE NECROLOGIA.
OU ARTE E CIÊNCIA DE EMBALSAMAR
OS CADÁVERES, COM ENSINAMENTOS PRECIOSOS
SOBRE A CORRUPÇÃO DAS PARTES E ORGÃOS E DOS SEUS PRINCÍPIOS.
Os fundamentos da arte da dissecação,
as drogas e espécies animais e vegetais antissépticas
e odoríferas;
e um método seguro para vaticinar e adivinhar,
pela observação das entranhas.
A Medicina Forense e
métodos para decifrar a conjuntura,
na ocorrência da morte.
Segue paralelo ao discurso e exposição da doutrina
o relato de três casos,
que dão corpo e contexto a todos
os ensinamentos.
E serve para contestar a
ANDREA VESALIO.





PRÓLOGO



Deglutidores de cartapácios e roedores de notas de rodapé, em afã quotidiano e tenaz mas sempre pouco gratificante, serenos na sua humildade e cultores de génio e diligência alheia, os compiladores foram no passado os imprescindíveis testemunhos de uma transmissão ininterrupta dos saberes e das culturas. Sábios de coisa nenhuma, mas manipuladores intrépidos de todas as artes e ciências, a sua colossal erudição foi sempre proporcional de uma discrição cultivada quase até ao anonimato. Quando todos se alucinavam com o novo, dedicaram-se com empenho sereno mas desempoeirado a salvar o antigo, a assegurar que com uma biblioteca escorreita e seleccionada com astúcia qualquer ignorante pudesse fazer figura de sábio.
Num só volume, um compilador adestrado podia reunir quanto bastasse de Hipócrates, Galeno, Averrois, Avicena, Aristóteles, Homero, Xenofonte, Cícero, Plínio, Ovídio, Aulo Gélio, Dante e Santo Isidoro para que qualquer estudante cábula de Coimbra ou Salamanca se pudesse alçar a Físico Mor do Reino e ainda fosse apto a escrever uns vilancetes e animar um sarau de academia de curiosos. Se diligente e aventureiro, ainda escreveria um libelo e corrigiria a alguns mestres.
Em verdade, foi o que se passou com Andrea Vesalio. Quando escreveu o De Humana Corporis Fabrica, era um jovem empreendedor e sanguíneo, com o génio suficiente para revolver as mentalidades de contemporâneos e coevos com a sua irreverência e espírito quizilento. Com imperturbável falta de escrúpulos e de horizontes de referência éticos e morais, alguma esperteza saloia mas muito mais estultícia e umas tantas tesouras e facalhões, julgou-se capaz de observar nos corpos alheios tudo o que os outros não houveram enxergado.
Qualquer gourmand bem ilustrado e exercitado, habituado a usar o florete para esfolar e trinchar uma lebre ou uma perdiz, a procurar nelas as partes mais gostosas e mais estimulantes ao paladar e aquelas que se hão de deitar fora, a seleccionar os ossos para a sopa e as tripas para as galinhas, faria uma demonstração mais exuberante da arte e prudência no usar das lâminas. Nem lhe seria preciso ler o grego e o latim, nem conhecer as máximas da dialética de Platão.
Vesalio inaugurou então uma disciplina nova por ignorância ou falta de complacência pela prudência dos saberes antigos, porque dispunha com certeza de más compilações, traduções e resumos deficientes. E não chegara a compreender as razões porque os seus mestres não tinham usado ainda de uma consciência tão liberal quando se tratava de meter as facas às carnes, músculos e tendões dos seus conterrâneos. Porque não puderam tratar com lógica tão profana um objecto que continuavam a ter por sagrado.
Este tratado não resulta então do trabalho de um sábio ou de um mestre, mas tão só de um compilador. Movido pelas preocupações que já ficaram enunciadas e não mais.
E quer apenas enunciar e concluir que a necrologia é uma arte prudente; quero dizer de prudência. E quanto a ciência usa de toda aquela que os compiladores reuniram em cartapácios e colecções, mais algumas descobertas que vão saindo, como qualquer um pode usar para os seus fins próprios.

E propõe-se já no primeiro capítulo a doutrina que estrutura a intenção:
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte de manter os mortos bem viçosos.




LIBELO BREVE,
que serve exclusivamente de introdução
ao assunto do primeiro capítulo.

Ao conceber o universo inteiro do homem como um contencioso mutuamente exclusivo entre a vida e a morte, que é a suma de toda a sua dialética, Karl Marx e Friedrich Engels reenunciaram a trave mestra que ininterruptamente firmou o edifício das ideias e conceitos sobre a vida humana. Podê-las-ia compilar nesta máxima: a morte inicia-se exactamente no primeiro instante da vida, pelo que toda a medicina se pode julgar como um esforço estulto e vão para dar aparência de vida exultante aos corpos moribundos. Se a morte não fosse o vector axial de toda a vida, a reprodução, que é um mecanismo compensatório da necrose, seria uma função catastrófica.
O fim próprio da vida é realizar a morte. E o da reprodução realizar mais morte, para que o processo de necrose que fundamenta e justifica o universo não se interrompa. A própria história do cosmos é a história do envelhecimento ou necrose e morte das estrelas e galáxias. É a razão porque todo o pensamento religioso projecta a exultação do homem nos seus fins próprios, para a morte que, quando as mentalidades dominantes passaram a sobrevalorizar a vida, nomeou ainda de vida eterna.
Ora, todas as ciências da vida descendem de artes da morte e de operar com ela. Quando, onde e porquê ocorreu a subversão nestes princípios que nortearam todo o pensamento humano, é o que pretendemos determinar. Porque é que a necrologia se subverteu em medicina e cirurgia?
No século XVI e durante os seguintes, amadurecera uma bizarra e interminável disputa entre médicos e cirurgiões. Cada uma das corporações tratava de reivindicar para si a origem da outra.
Em verdade, aos cirurgiões competia nesta querela o papel mais quesilento, porque se tratava de obrigar aos médicos a reconhecer-lhes um estatuto nem que fosse paritário. Foi neste contexto que eles próprios propuseram remontar a sua antiguidade e origem até aos antigos sacerdotes egípcios, mestres da arte de embalsamar os cadáveres e a outros necrólogos.
A reputação transcendente e divina da sabedoria egípcia, bem como a ideia de que nela se fundamentara o melhor do lustro helénico, estava então em franca ascensão depois que Marsilio Ficino editara os fragmentos alexandrinos que a tradição remontava a Hermes Trimegisto. E a obra de Jamblico De Mysteryiis Aegypciorum tornara-se um breviário. Como se os vestígios materiais das suas intervenções operatórias pudessem ser um medium que transportasse pelos séculos as virtualidades mágicas das suas mãos, o pó de múmia tornara-se uma mezinha (medicina) tão disputada entre os pategos, que os viajantes acusavam as cáfilas magrebinas de acarvarem os cadáveres dos prisioneiros de guerras e razias nas areias do deserto, para impingirem aos estultos venezianos as cinzas.
Era ainda à tradição necrológica antiga, que a cirurgia fazia remontar a escola galénica e a sua iniciação operatória. Na época de Vesalio, o melhor do génio de Galeno deixara de se reconhecer no trabalho ordenador que empreendera ao classificar os humores universais; na sua farmacologia ou no papel axial da observação das urinas como ordenador do diagnóstico.
O que de Galeno agora se reclamava era a sua anatomia e o método de observação anatómica, que reproduzia as cerimónias e os rituais necrológicos dos sacerdotes do Nilo. Desde o século XII que em Salerno a dissecação de um cadáver se constituíra na cerimónia de consagração e no ritual de iniciação de qualquer magarefe. Tratava-se de superar o timor mortis; a partir de então qualquer cirurgião estava preparado, mesmo para assumir o homicídio como consequência indeclinável do exercício do ofício.
O papel sádico e esconjuratório que a anatomia parece ter na configuração da mentalidade médica e mesmo da sua iconografia desde o século XIV, denuncia a corrupção do saber necrológico num espírito de necrofilia mórbida. Anda em todos os manuais de história da medicina, todavia representado como epopeia heroicotrágica que ainda retomarei, o episódio de um médico austríaco que no século XVII dissecou o cadáver do filho, que assassinou no êxtase da alucinação por não encontrar outro disponível para o escalpelo.
A própria cirurgia amadureceu consciente de ser a corrupção da antiga tradição necrológica do saber humano, num mórbido e alucinatório espírito necrofílico. E o clímax do meu tratado ocorrerá quando demonstrar que, na alucinação esquizofrénica de realizar o paradoxo da vivissecação, Vesalio se constituíra no mais insigne monumento da necrofilia.
O que não diria ainda da vivissecação do cérebro?!






CAPÍTULO PRIMEIRO
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte de manter os mortos bem viçosos.

O mais natural é que qualquer leigo julgue que o exercício de embalsamar um cadáver consiste em interromper o processo de necrose dos tecidos e orgãos que, mesmo após a morte do organismo considerado como um todo e um universo, continuam vivos. Mesmo um labrego sabe que a morte de um organismo não determina o cessar imediato e súbito da vida em cada uma das partes, cuja necrose prossegue por tempos ainda difíceis de determinar;. Basta que se tenha, um dia, vivido o espectáculo sempre hilariante e patético de ver uma galinha correr desenfreada por um terreiro com o pescoço pendurado.
Os leigos observam sempre as coisas com tanta atenção e astúcia como um sábio. A sua condição revela-se quando passam a julgar sobre aquilo que observaram.
Se o processo de embalsamar um cadáver consistisse em interromper a necrose de cada orgão, sistema, ou tecido do organismo já morto como tal, só garantiria que a contradição estrutural entre a vida e a morte iria prosseguir indeterminadamente e de forma muito mais violenta. A condição que daí adviria ao cadáver é impossível de imaginar, mas parece-me que toda a sua massa reverteria numa chaga viva, informe e incontrolável, já incapaz de se sarar.
O que o embalsamador pretende é reduzir toda a massa do cadáver ao estado de morte definitivo e radical, precipitando uma morte violenta de cada parte e sistema. A necrologia opera a morte e não a vida, é a ciência ou arte da morte e prossegue o estudo minucioso do processo de necrose dos organismos, para o controlar e precipitar, impedindo que a renitência da vida em não reconhecer a sua precariedade perturbe o repouso da morte no seu triunfo, que é o fim e a causa inexorável de todo o universo. A vida exultante ou renitente é um estado patológico crítico da morte, inadmissível no equilíbrio do cosmos, pelo que deve ser corrigido e sarado.
Quando um embalsamador retalha um corpo, é a morte que observa e contempla e o repouso que celebra. Onde encontra o mínimo sintoma de vida, incomoda-se e alarma-se, trata imediatamente de o erradicar, nem que para isso tenha que separar o abcesso do são até que reste exclusivamente o invólucro ressequido e imune. È por isso que as vísceras, onde sob várias formas mesmo alógenas como as bacterianas ou microbianas a vida parece mais renitente, depois de várias ablacções e esconjuras são em geral incineradas ou lançadas aos mais necrófilos bichos, como as hienas ou abutres. A incineração é a resolução mais radical dos necrólogos e merecer-me-á ainda comentários detalhados.
Porque contemplou o mistério supremo da morte no seu triunfo e foi o seu sacerdote e o agente da resolução definitiva, o embalsamador está prestes a transportar-se para o lado da transcendência, ganha e opera poderes insuspeitados, adivinha e vaticina.
Os primitivos cristãos eram ainda sacerdotes necrófagos e necrólogos. Eles ingeriam simbolicamente a carne e o sangue do cordeiro imolado para participar da necrose cósmica e celebravam o Filho de Deus na sua apoteose de cadáver, pois não pode ser outro o sentido da Sua ressurreição e do Seu triunfo na vida eterna. A própria religião cristã subverteu o profundo sentido necrológico da sua teologia, numa paródia de rituais e práticas sociais e culturais de uma necrofilia aberrante. São sintoma disso as crises cíclicas de pânico e histerismo perante a morte com que foi regenerando o seu papel dirigente numa sociedade leviana que celebra estultamente o triunfo da vida e que esconjura a morte através de rituais de alucinação estética pela necrose e sua contemplação.
A arte de embalsamar é pois substancialmente uma necrologia, no sentido mais radical da disciplina.
É sabido e não merece ser disputado, todavia ainda tratarei de o explicitar mesmo recorrendo ao paradoxo, que os médicos da antiguidade só puderam configurar algumas ideias relativamente operacionais sobre a morfologia do corpo humano e das suas partes, os estados patológicos da vida dos organismos, orgãos ou sistemas e sobre a relação violenta e omnipresente entre a necrose e a vida, no contacto com os sacerdotes necrólogos que dissecavam, estudavam e embalsamavam os cadáveres. Aos poucos foram-se apropriando dos segredos do seu saber e dos seus rituais, para os subverter em medicina.
O que tratarei a seguir é de demonstrar que o insucesso na aplicação de todo esse saber hermético à medicina, que é toda a sua história, advém do simples facto de os médicos nunca terem assumido ou querido assumir a consciência de que os conhecimentos de que se serviam para prorrogar a vida tinham sido ordenados para precipitar a morte na sua exultação radical.
Para compreender a vida e os seus princípios, os médicos e cirurgiões tratavam de contemplar a morte e os cadáveres, segundo os métodos e os ritos que haviam aprendido dos sacerdotes necrólogos embalsamadores. Que poderia decorrer de um tal paradoxo, senão a aberrante precipitação na alucinação necrofílica?

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